“Escravidão é capitalismo extremo”, asseverou o líder revolucionário Huey P. Newton em entrevista realizada pelo […]

“Escravidão é capitalismo extremo”, asseverou o líder revolucionário Huey P. Newton em entrevista realizada pelo The Movement em 1968[1]. A afirmação de Newton se mostra atual quando dos acontecimentos recentes de trabalho análogo a escravidão nas vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi – onde após denúncia de três trabalhadores que procuraram a Polícia Rodoviária Federal, em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha – descobriu-se que as empresas terceirizadas Fênix Serviços e Oliveira & Santana mantinham centenas de homens monitorados por câmeras, alimentados com comida estragada e submetidos a choques, espancamentos e spray de pimenta. Após investida do Ministério Público do Trabalho (MPT), 196 trabalhadores foram resgatados[2].

A reação patronal não poderia ter sido mais absurda e mostra o modus operandi de um setor da classe proprietária brasileira. Em nota publicada no dia 27 de fevereiro de 2023, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves “passa pano” para as vinícolas envolvidas, atribuindo a responsabilidade à empresa terceirizada que “contratou” os trabalhadores e afirma que a responsabilidade última está no fato de que “(…) há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.”[3]

O raciocínio mostra o vínculo entre racismo/xenofobia e exploração do trabalho capitalista: é necessário super-explorar trabalhadores negros e nordestinos para compensar a recusa dos trabalhadores locais em se submeter a um regime aviltante de trabalho já que estes disporiam de mecanismos de proteção e assistência social estatais. Enganar e sequestrar trabalhadores, de preferência vindo de outros estados, sem parentes próximos, faz-nos lembrar que este foi o mecanismo que alimentou por séculos o colonialismo e escravidão em nosso país.

Mas não parou por aí. Não bastava que a representação empresarial de Bento Gonçalves viesse falar o que pensa. Era preciso que a própria empresa envolvida colocasse os pingos nos “is”. Em audiência convocada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) a empresa terceirizada que escravizou trabalhadores na Serra Gaúcha e foi contratada pelas vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi se negou a indenizar os trabalhadores alegando não “reconhecer a ocorrência de trabalho em condições análogas à escravidão”[4] Esta postura da empresa é bastante coerente em um país em que os debates sobre a abolição da escravidão giraram em torno da indenização ou não dos senhores e não dos que foram vítimas de tão vil instituição. Não tardou circulassem na imprensa os que se mostrassem preocupados com o “mercado brasileiro de vinhos”[5] com a repercussão do caso. Preocupa-se mais com os lucros que com as pessoas escravizadas[6]. Causa mais indignação os eventuais prejuízos a indústria do vinho que a falta de indenização aos que foram submetidos a estas vis condições de trabalho. Mas para tranquilidade do “mercado brasileiro de vinhos”, o Globo publicou que os turistas que vão a Serra Gaúcha responsabilizam a terceirizada e não as vinícolas pelo ocorrido[7]. Curiosamente foram estes os mesmos setores da imprensa hegemônica que defenderam a terceirização como um modelo de trabalho mais moderno e alternativo as relações contratuais da CLT.

Perguntamo-nos: o deus-mercado não resolve tudo por si mesmo? Como que em pleno capitalismo é possível observar formas de exploração análogas à escravidão? E não estamos falando de fazendas e latifúndios nos confins do Amazonas e do Mato Grosso ou mesmo de trabalhadores bolivianos escravizados (majoritariamente indígenas) nos porões insalubres chamados de ateliês de costura na Boca do Lixo em São Paulo, mas de trabalho análogo a escravidão que ter por intermediária uma empresa terceirizada no coração das vinícolas da Serra Gaúcha, local de intenso fluxo turístico e que se apresenta como uma espécie de Provenza tropical[8].

Com tal arranhão na imagem da produção da indústria do vinho na Serra Gaúcha não tardou para que o ressentido desata-se a falar. Em mais um exemplo do que o sociólogo Guerreiro Ramos chamou de “patologia social do branco brasileiro”, o vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel (Patriotas) foi à tribuna da Câmara de sua cidade para defender a vinícolas e destilar ódio contra baianos e nordestinos[9]. Nas palavras de Sandro Fantinel a única cultura que teriam os baianos seria a de “ficar na praia tocando tambor” e que os agricultores e donos de vinícolas deveriam contratar argentinos em seu lugar para não ter mais “problemas deste tipo”. A fala de Fantinel foi repudiada pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), e pelo governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), assim como, pela unanimidade dos órgão de imprensa do país. Expulso do Patriotas, Fantinel viu seus pares aprovarem contra ele, por unanimidade, um processo de cassação de seu mandato[10]. A fala ressentida do vereador está permeada do racismo característico dos que estão ávidos em encontrar culpados para seus próprios fracassos. Mas representa in extremis a forma como a exploração do trabalho é ainda naturalizada em nosso país. O Vale dos Vinhedos é o paraíso para os que lucram com a indústria dos vinhos mas um inferno para seus trabalhadores. E isso é normal, segundo o raciocínio de Fantinel. Trabalhadores “sem cultura”, por isso sem direitos. Sem direitos, por isso destituídos de dignidade e privados de sua própria humanidade. Se reclamam da exploração são tidos por arruaceiros e desordeiros. Este é a representação clássica do negro por parte das elites que Clóvis Moura tão bem nos apresentou: bom escravo/mau cidadão[11].

Ângela Davis em palestra disponível no Youtube (com legendas em português)[12] chama a atenção para a necessidade de pensarmos a luta contra o racismo e as opressões para além dos limites da atual sociedade capitalista. Ela afirma,

Se nós lutamos contra o racismo, nós queremos muito mais que inclusão. Inclusão não é suficiente. Diversidade não é suficiente. Como, aliás, nós não queremos ser incluídos em uma sociedade racista. Se nós dissermos não ao patriarcado heteronormativo nós não queremos ser assimilados com uma sociedade misógina, patriarcal e heteronormativa. Se dissemos não para o pobreza não queremos ser contidos por uma estrutura capitalista que valoriza mais o lucro que os seres humanos. Se nós reconhecemos que aqueles que querem resolver o problema da escravidão criando formas mais humanas de escravidão. Nós estamos aplicando a lógica do racismo se dissermos que aqueles que pedem por “reforma policial” e “reforma carcerária” mantendo estruturas racistas como eles fingem abordar o problema do racismo. Eles estão absolutamente errados. E é por isso que nós falamos “não” para o “feminismo carcerário” e sim, para o feminismo abolicionista (…)

Intelectual negra e radical, o que Ângela Davis nos lembra é que é necessário ocupar a estruturas para destruí-las e não para que as coisas permaneçam como estão ou, o que é pior, a presença de nossos corpos divergentes seja utilizada para apresentar uma aparente normalidade do sistema de exploração capitalista e silenciar as vozes que em suas casas, no trabalho e nos presídios sofrem as consequências da violência estatal que segrega e nos explora como raça e como classe. Não queremos ser incluídos em uma estrutura capitalista que nos segrega e, quando tem oportunidade, reescraviza ou nos coloca cotidianamente no lugar de uma quase escravidão quando milhões de trabalhadores negros e negras tem como única opção o mercado informal e o precariado. A nossa consciência negra só é radical – no sentido de ir à raiz dos problemas – quando compreende que não é possível ser negro por inteiro no capitalismo.

O que ocorreu aos trabalhadores escravizados das vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi representa o puro suco do capitalismo brasileiro. O vinho que ocupa a prateleira dos supermercados e as mesas dos que compram destas marcas está batizado com o sangue da exploração e da escravidão. Nada mal para um país em que por séculos todo lucro a prosperidade econômica celebrada nas mesas das Casas Grandes dependia do trabalho negro e indígena mantido com a violência dos pelourinhos e o aparato jurídico e policial da escravidão. Ao contrário do que pensam os liberais, a história se repete não por conta do egoísmo desenfreado dos donos das vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi que, por sua vez, colocam culpa nas empresas terceirizadas. Foram as leis do mercado que geraram tal barbárie e foi a existência de um Ministério Público do Trabalho e de instituições estatais o que permitiu que ela fosse, neste caso, combatida. Pensar que é possível combater o fascismo de Fantinel e seus apoiadores com o liberalismo e as políticas de austeridade fiscal é nos condenar a um eterno retorno a barbárie.

[1] Para ler a entrevista na íntegra acessar: https://www.novacultura.info/post/2021/10/05/huey-newton-fala-ao-the-movement-sobre-o-partido-dos-panteras-negras

[2] https://veja.abril.com.br/coluna/radar/produtores-de-vinho-do-rs-tentam-justificar-trabalho-escravo-em-vinicolas/

[3]https://gazeta-rs.com.br/nota-de-posicionamento-do-centro-da-industria-comercio-e-servicos-de-bento-goncalves/

[4]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/03/03/terceirizada-de-vinicolas-do-rs-nega-indenizacao-aos-trabalhadores-diz-mpt.htm

[5] https://www.metropoles.com/gastronomia/beber/escandalo-com-trabalho-escravo-afetara-mercado-brasileiro-de-vinhos

[6] https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/denuncia-de-trabalho-escravo-nas-vinicolas-do-sul-preocupa-especialistas/

[7] https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/03/turistas-em-bento-goncalves-avaliam-que-culpa-por-condicoes-dos-trabalhadores-e-da-terceirizada-nao-das-vinicolas.ghtml

[8]Esta realidade, no entanto, não está restrita a Serra Gaúcha. De acordo com Sérgio Poletto, Diretor da Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais do Rio Grande do Sul, no Rio Grande do Sul, entre 2021 e 2022, houve crescimento de 214% no número de trabalhadores resgatados de situação análoga à escravidão. https://www.camara.leg.br/noticias/888596-so-neste-ano-500-pessoas-ja-foram-resgatadas-do-trabalho-analogo-a-escravidao-no-brasil

[9] https://www.youtube.com/watch?v=HBiUl7KQ-so

[10] https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/03/02/camara-de-vereadores-de-caxias-do-sul-aceita-pedido-de-cassacao-de-vereador-que-discursou-contra-baianos.ghtml

[11] https://dandaraeditora.com.br/produto/o-negro-de-bom-escravo-a-mau-cidadao/

[12]Angela Davis Criticizes “Mainstream Feminism” / Bourgeois Feminism.

 

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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