A viagem de Lula à China, em que foi recebido pelo primeiro ministro Xi […]

 

A viagem de Lula à China, em que foi recebido pelo primeiro ministro Xi Jinping, está muito além dos simbolismos – como a bela execução da música “Novo Tempo” de Ivan Lins pelo cerimonial chinês. A China vem se projetando como a principal economia em escala global em frente a iminente debacle dos Estados Unidos potencializada agora com a falência do Silicon Valey Bank, especializado em financiar startup´s e empresas de tecnologias[1]. A falência do Silicon Valey manifesta a crise dos Estados Unidos como potência unipolar ao combinar financeirização da economia e alto investimento em economia e inovação. É o monopólio das big techs norte-americanas e a imposição – por meios militares, portanto, violentos – do padrão dólar nas transações internacionais correntes, o que manteve a economia dos Estados Unidos como amplamente hegemônica no comércio internacional.

Lula e Xi Jinping firmaram um acordo em que transações comerciais entre ambos os países seriam firmados em moeda própria que não o dólar, para diminuir a dependência da economia norte-americana. Não a toa, o complexo de “vira latas” da mídia hegemônica brasileira quis colocar Lula como algoz do dólar sem se perguntar, em nenhum momento, qual benefício real para nossa economia tê-la atrelada as verdinhas do império. Vale ainda lembrar que Biden tentou, a partir da guerra da Ucrânia, a partir da utilização da OTAN para controlar áreas estratégicas à geopolítica russa, escalar o conflito com o episódio dos balões e objetos não identificados que estariam a serviço da espionagem chinesa e ter patrocinado uma tentativa de reaproximação (a princípio frustrada) entre Coreia do Sul e o seu principal parceira na região, o Japão. Vendo o renascimento do trumpismo em terras ianques, Biden, como todo democrata que se preze, se alia a máquina de guerra estadunidense que garante mercados para os produtos de uma economia, desde do século XIX, que só apresentou pujança manu militari. Por isso a retórica de Lula de uma solução negociada e pacífica para a guerra da Ucrânia se não é realista do ponto de vista dos sujeitos diretamente envolvidos, é um inteligente estratégia de soft power à brasileira e dialoga diretamente com os interesses do Sul Global.

A ida a Lula, no entanto, para tristeza dos articulistas brasileiros, não se resumiu ao não uso do dólar nas relações comerciais seu parceiro asiático, mas avançou em outros campos da economia como tecnologia e indústria e um plano de cooperação entre as agências espaciais do Brasil e da China[2]. A liderança de Dilma Rousseff à frente do banco do BRICS, com sede em Xangai, é algo absolutamente importante para o futuro da economia brasileira com reflexos na economia mundial[3]. Assistiremos a emergência de um mundo multipolar e o Brasil com o protagonismo necessário para estruturar um novo modelo de desenvolvimento nacional? Apesar dos bons ventos vindos da China não é o que se está necessariamente desenhando.

Em primeiro lugar, a proposta do “arcabouço fiscal” apresentado por Haddad e Tebet está muito aquém do necessário e ainda preso a ortodoxia neoliberal para que possamos ter condições de a partir de nossa economia locais estabelecer este novo modelo. Seja por conta da correlação de forças no Congresso, seja pela hegemonia em parte da esquerda da receita neoliberal para a economia, a proposta do novo “arcabouço fiscal” não constrói bases sólidas para um ciclo virtuoso de crescimento econômico. Por isso Lula parece apostar em compensar estas âncoras que fundeiam nosso desenvolvimento – como a insistência de Roberto Campos Melo, presidente do Banco Central, em estrangular nossa economia com taxas de juros de 13,75% ao ano! – em criar um ambiente favorável ao Brasil em relação ao comércio internacional, ampliando as relações com outras potências econômicas para além dos Estados Unidos, como fez em seu primeiro mandato. A diferença de vinte anos atrás é que temos a economia norte-americana em franco declínio e ascensão da China. A própria ideia do BRICS não só está mais consolidada mas procura-se ampliá-la para outros parceiros como Emirados Árabes, Egito e Bangladesh.

Em segundo lugar, a não revogação do Novo Ensino Médio por parte de Lula e Camilo Santana é uma péssima sinalização no sentido de um país com cidadania e soberania. O exemplo do China, da Coréia do Sul e de outros países em crescimento econômico mostra como o investimento em educação pública, ciência e tecnologia foi fundamental. E este investimento não partiu de grupos privados e corporações empresariais mas do próprio estado ao subvencionar e dar autonomia intelectual, tecnológica e científica para que centros educacionais e de pesquisa investissem em inovação. Se assim não o fosse, por exemplo, a China não teria o controle da tecnologia 5 G. O novo ensino médio do governo Temer e Bolsonaro estava a serviço de um projeto de Estado-Pária em que o futuro de nossas crianças estava relegado a vender bolo de pote como único meio de sustentação econômica. Desta maneira, o governo Lula perde a oportunidade de não só revogar o novo ensino médio mas construir com a sociedade civil um modelo educacional que, partindo das conquistas históricas do movimento da educação, articule-se com o atual reposicionamento do país em escala global.

Oliver Cox já nos alertava desde os anos 1960 que as relações comerciais em escala internacional são constitutivas do capitalismo como sistema-mundo. São as relações comerciais que estão na base do desenvolvimento capitalista que geram as demandas que serão atendidas com crescimento da indústria e da agricultura e não o contrário, segundo sua interpretação[4]. Independente de nossa posição no campo da teoria, devemos ler a ida de Lula à China como um momento de potencial virada histórica. Isso porque há uma conjunção de fatores favoráveis para que efetivamente tenhamos um mundo multipolar. Evidentemente estamos no campo das possibilidades e cabe analisar tendências e contra- tendências, além de assumir uma postura militante até porque o debate econômico é muito estratégico para ficar a cargo de tecnocratas e economistas. Marx já alertava a respeito. E com razão.

 

 

[1]https://economia.uol.com.br/noticias/rfi/2023/03/13/entenda-por-que-colapso-de-banco-do-vale-do-silicio-causa-apreensao-em-varios-paises.htm

[2] https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/04/14/lula-e-xi-jinping-assinam-acordos-comerciais-e-de-parceria.ghtml

[3] https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/04/13/dilma-toma-posse-como-presidente-do-banco-do-brics.ghtml

[4] Cox, Oliver. Capitalism is a system. Monthly Review Press, 1964.

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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