Fábio Nogueira Quando refletimos sobre a poética-estética de Solano Trindade (1908-1974), observamos, de forma recorrente, […]

Fábio Nogueira

Quando refletimos sobre a poética-estética de Solano Trindade (1908-1974), observamos, de forma recorrente, os mesmos motivos que inspiraram o líder abolicionista e escritor Luís Gama (1830-1882): a afirmação de uma identidade rebelde do negro associada com a valorização estética e cultural dos valores afro-brasileiros. Esta consciência negro-rebelde que tem em Luís Gama um precursor e, em Solano Trindade, um dos principais continuadores é, por outro lado, a mesma que embalou os sonhos de transformação do poeta moçambicano José Craveirinha (1922-2003) e do angolano Antônio Jacinto (1924-1991) (para ficarmos restritos a África lusófona). Em termos históricos, estas manifestações artísticas e poéticas marcam dois períodos distintos da relação conflituosa de integração dos negros à sociedade Ocidental: o primeiro, aqui representado por Luís Gama, em que os negros se “erguem da escravidão” (meados do século XIX, auge das lutas abolicionistas a 1888, com a abolição oficial); o segundo, no qual se inscrevem Solano, Craveirinha e Antônio Jacinto, inicia-se mais vigorosamente no Pós-II Guerra Mundial com o processo de descolonização do continente africano.

O ator, poeta e pintor Solano Trindade nasceu em Recife, em 1908. Era filho do sapateiro Manuel Abílio e da quituteira Merença (Emerenciana). Estudou no Liceu de Artes e Ofícios e, nos anos 30,começa a escrever seus primeiros poemas. Em 1934, participa do I e II Congressos Afro-Brasileiros, em Recife e Salvador. Em 1936,funda a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileiro. Em 1940 transfere-se para Belo Horizonte/MG, Pelotas (RS) (onde organiza um grupo de cultura popular), mas, em 1941, após breve passagem por Recife, dirige-se à capital federal: o Rio de Janeiro.

No Rio, o seu ponto de encontro com poetas, intelectuais, jornalistas e artistas é o Café Vermelhinho. Ingressa no Partido Comunista Brasileiro (PCB). No início dos anos 50, Solano, Margarida Trindade (sua esposa) e o sociólogo Edson Carneiro fundam o Teatro Popular Brasileiro (TPB). A proposta do TPB distinguia-se da do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado e liderado por Abdias do Nascimento. O primeiro tinha como foco a “cultura popular” e as suas manifestações artísticas e, o segundo, abriu espaço para a montagem de peças de autores estrangeiros, como O Imperador Jones, de Eugene O’Neill. O trabalho do TPB foi apreciado por grupos estrangeiros a exemplo da Ópera de Pequim, a Cia. Italiana de Comédia, a Comédie Française e por personalidades como Edith Piaf. Em 1956, Solano Trindade encenou a peça “Orfeu” de Vinícius de Morais (que depois se transformou em filme por intermédio de Marcel Cammus). O ator Solano Trindade atuou nos filmes “Agulha no Palheiro”, “Mistérios da Ilha de Vênus” e “Santo Milagroso”. Também foi co-produtor do filme “Magia Verde”(este premiado em Cannes). O TPB realizou, também, uma turnê pela Europa e se apresentou na Polônia e Checoslováquia. Certa vez, o TPB veio se apresentar em São Paulo e Assis, um escultor do Embu, foi assistir ao espetáculo. Assis e Solano ficaram amigos e este o convidou para visitar a cidade de Embu, na região metropolitana de São Paulo, local que já abrigava artistas como Sakai e Asteca. Ao conhecer Embu, Solano se encantou com o clima da cidade e adotando-a como sua residência. Nela organizou festas, exposições e criou junto com Assis a feira de artesanato do Embu (semelhante a feira hippie da Praça da República, em São Paulo). Durante este período, em 1964, seu filho, Francisco, preso pela ditadura militar, morre na prisão. Em 20 de fevereiro de 1974, na cidade do Rio de Janeiro, falece Solano Trindade, no Rio de Janeiro.

Entre os principais livros publicados por Solano estão Poemas de uma vida simples (1944), Seis tempos de poesia (1958) e Cantares do meu povo (1963). Em Poemas de uma vida simples (1944) está o seu poema mais conhecido (Tem gente com fome) que foi gravado, em 1979,pelo grupo Secos e Molhados e interpretado pelo cantor Ney Matogrosso. O poema “Tem Gente com Fome” lhe custou uma prisão e a apreensão os exemplares do livro. Ao lado da poesia, o teatro e o estudo das manifestações da cultura negra e popular.

Neste sentido, a poética e o intenso labor artístico de Solano Trindade estão muito além do que se convencionou classificar, de forma pejorativa na maioria das vezes, de uma estética-poética “negra” ou “folclórica”. O seu método era sintetizado na frase: “Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte.” Ou seja, o papel do artista é o de defrontar o povo com aquilo que ele mesmo produz para que ele (o povo) se veja como sujeito criador de cultura e sentido para o mundo. Desta maneira, o artista cumpre o seu papel criativo de intérprete/desconstrutor da realidade e, ao mesmo tempo, se liga historicamente às aspirações e dilemas dos homens e mulheres do povo.

Para Solano, a cultura negra traduz valores universais que, sem diluir-se na amálgama cultural brasileira, refaz-se historicamente em forma de consciência crítica e transformadora da realidade social. Em resumo: escutar o povo e traduzir a sua consciência em forma de poesia. Neste trecho do poema Conversa (Cantares a Meu Povo,1963) o poeta coloca-se como um crítico à realidade dos negros sem, com isso, se arrogar o papel de “observador neutro” ou de “eleito” que fala assepticamente para “os de baixo” pois conhece a “verdade”. Ao contrário, Solano ao identificar-se com os dramas do negro o faz como um negro, como parte, e é desta posição que lança o seu olhar crítico, em forma de poesia, às condições degradantes de trabalho e de vida do povo. Por isso, o poema é estruturado na forma de um diálogo e, é através deste instrumento, que se desmistifica a realidade presente:

Eita negro!

quem foi que disse

que a gente não é gente?

quem foi esse demente,

se tem olhos não vê…

– Que foi que fizeste mano

pra tanto falar assim?

– Plantei os canaviais do nordeste

– E tu, mano, o que fizeste?

Eu plantei algodão

nos campos do sul

pros homens de sangue azul

que pagavam o meu trabalho

com surra de cipó-pau

……

Em meu ponto de vista, este é um dos maiores méritos da “negritude popular” de Solano Trindade, como fazia referência o historiador Clóvis Moura (1925-2003): fazer esta síntese entre a consciência negro-popular – que é, em linhas gerais, o seu saber ser, provar e conhecer o mundo — e as aspirações de transformação e mudança social que sacudiam a alma do artista e poeta. Este fato torna a poesia de Solano mais leve, repleta de cores, sons, aromas e ritmos sem abrir mão do comprometimento político de subverter a realidade. Comparativamente a poesia negra do final dos anos 70 e da década de 80 – a exemplo da poesia de Paulo Colina (1950-1999) e dos primeiros trabalhos de Cuti – ela é uma poética menos angustiada: a conflitividade não se concentra no “eu” negro que se descobre em um mundo que o sufoca e nega e, por isso mesmo, o faz se afirmar, mas em um “nós” negro que se encontra travestido sob diversas personas (o mulato, o trabalhador, o sambista) e manifestações culturais (afoxé, samba, maracatu etc).

Obviamente, a constelação histórica da “negritude popular” de Solano não é a mesma da encontrada por Colina e Cuti. Sem querer me alongar neste ponto, vale dizer que a percepção da cultura negra e a sua dimensão atlântica, durante os anos 70, emergem com um vigor desconhecido anteriormente. O importante aqui, no entanto, é avaliar as possibilidades de novos polos de cultura contra-hegemônica, historicamente e territorialmente referenciados, que se oponha ao pastiche da Word Music, homogeneizadora de estilos e ditadora de padrões de consumo e comportamento. Solano, neste sentido, nos indica caminhos extremamente importantes para o tipo de guerrilha cultural travada, atualmente, por aqueles que militam no front da cultura negra, indígena e popular.

Publicado originalmente no Correio da Cidadania.

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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