(Contribuição a Plenária da Via Campesina, Salvador, 29 de outubro de 2024). Quero agradecer às […]

(Contribuição a Plenária da Via Campesina, Salvador, 29 de outubro de 2024).

Quero agradecer às organizações que formam a Via Campesina, pelo convite, especialmente, por poder falar sobre um tema que considero estratégico que é a relação entre a questão racial e os povos das águas, das florestas, quilombolas, indígenas e do campo no Brasil. Antes de tudo, é importante situar que a atual estrutura fundiária brasileira se manteve inalterada, em termos gerais, nos diferentes ciclos de modernização econômica no país, desde o início da empreitada colonial. Este fenômeno não passou batido pelos principais intérpretes da realidade brasileira, entre eles, Clóvis Moura, Florestan Fernandes, Caio Prado Junior e Lélia González. Mais do que isso, estes souberam identificar como as dinâmicas da luta pela terra, a concentração da propriedade fundiária, e a forma objetiva de produção no campo, tem ligação direta como a vida urbana, os processos de industrialização e comércio. O fato, no entanto, é que no Brasil, assim como em outros países da América Latina, a formação da propriedade da terra, voltada à monocultura de exportação, ou mesmo, a transformação da Natureza em mercadoria (exploração predatória do ouro, diamantes e demais recursos naturais) deu-se de forma articulada a implantação de um projeto civilizador, vindo da Europa, de Portugal, baseado na imposição da fé cristã, na escravização/genocídio afro-indígena e no patriarcado.

Em outros termos, durante séculos no Brasil, a elite colonial, ligadas a Portugal, escravizou, matou e explorou recursos naturais tendo como critério de pertencimento ou não a humanidade a integração ao padrão civilizatório que ela estabeleceu (cristão, cis, hetero, masculino e branco). Evidentemente, nenhuma imposição se dá sem luta e resistência. Indígenas, quilombolas, mulheres, trabalhadores pobres e camponeses foram à luta. Estas determinações, em seu conjunto, formam as classes sociais no Brasil ao mesmo tempo divididas pelas posições objetivas opostas que ocupam no modo de produção – sua condicionante material – como por diferenças no que diz respeito a origem racial, herança cultural, identidade de gênero e orientação sexual. Não cabe aqui se perguntar o que vem antes (“o ovo ou a galinha”) porque são realidades que se reforçam mutuamente, para justificar um regime de acumulação desigual de riqueza, em que a classe dominante, a burguesia, amplia o seu lucro tendo como base a exploração do trabalho.

Em uma de suas últimas obras, A Sociologia Política da Guerra Camponesa de Canudos – da destruição de Belo Monte ao aparecimento do MST, Clóvis Moura sobre a luta do MST e dos movimentos camponeses no final dos anos 1990 chama a atenção ao fato de que estes “(…) procuram articular um projeto nacional na base de unidade estrutural e dinâmica entre o rural e o urbano, os sem-terra e os sem teto, o desempregado das favelas e o camponês sem-terra, entre o operariado industrial e o assalariado agrícola.” (Expressão Popular, Moura, 2000, p.144). Esta ideia-força é coerente com o que o próprio autor pensa a respeito do Quilombo de Palmares ao opor o “modo de produção palmarino” (baseado na propriedade coletiva da terra, no trabalho livre, na policultura e na exportação do excedente) ao “modo de produção colonial escravista” (baseado no controle privado da propriedade da terra, no trabalho escravizado, na monocultura de exportação etc). Segundo a lógica capitalista, era necessário explorar para produzir com o objetivo de manter os privilégios da burguesia nacional e transferir o grosso da riqueza produzida para os países capitalistas mais ricos (Estados Unidos e Europa). Segundo a lógica camponesa e palmarina, era necessário produzir de forma coletiva, diversificar a produção, para primeiro alimentar o povo e gerar riqueza com a comercialização do excedente produzido. Moura, desta maneira, nunca separou a situação econômica do contexto histórico que o produziu: a manutenção do racismo, construído por séculos de escravidão, é essencial para a reprodução do modo de produção capitalista dependente brasileiro. Neste sentido, é preciso afirmar o caráter antirracista da luta pela reforma agrária, pela produção agroecológica, quilombola e dos povos indígenas por seus territórios!

Voltemos ao ponto inicial de nosso raciocínio. Da mesma maneira que o capitalismo não é apenas um sistema econômico mas um sistema econômico-social, ele carrega em si forças destrutivas e negadoras da humanidade (a exploração do trabalho, a competição desenfreada, o lucro desmedido, a destruição da natureza, a intolerância, o machismo e o racismo). Logo, estas não podemos pensar a luta antirracista, contra o machismo e intolerância religiosa como “lutas identitárias” mas no sentido de que estas afirmam um novo sistema de valores que para se estabelecem como tal devem partir de uma práxis real e objetiva e tem como objetivo estratégico o controle do poder político pela classe trabalhadora. Por exemplo, para consolidar um sistema de produção cooperativo e agroecológico é necessário estar convencido de que esta estrutura produtiva é vantajosa em relação ao agronegócio. E quando falamos de “vantagem” não falamos necessariamente de “lucro” no sentido capitalista do termo. Pensamos “vantagem” como algo que produz benefício econômico, social e ambiental por ser uma forma de produzir riqueza que não se baseia na exploração mas na solidariedade. Não há como avançar neste sentido se não convencemos outras pessoas no mesmo, logo, não há luta econômica separada da luta ideológica. Quando falamos de luta ideológica, este talvez seja o principal obstáculo para o avanço da luta camponesa hoje. Nos anos 1980 e 1990 – período de implantação do neoliberalismo – o movimento camponês conseguiu capitanear um forte sentimento de insatisfação com a política econômica porque apresentava para os setores de classe média e “os de baixo” um conjunto de experiências práticas, concretas, nas ocupações e assentamentos (escolas no campo, produção cooperativa, organização e método de trabalho político etc). A luta ideológica é, portanto, luta prática, de práxis; não é “discursero” ou “falatório” sem fim (geralmente em primeira pessoa, pois vazio de experiências coletivas concretas).

É evidente que houve uma derrota ideológica quando a esquerda, com a eleição de Lula, em 2001, achou ser possível manter a estrutura econômica neoliberal – aprofundando a financeirização da economia brasileira – e políticas redistributivas voltadas às classes populares. Porém, pela lógica do próprio capital, este se fortaleceu e diante de uma crise internacional que pode colocar em risco os seus lucros e forma de acumulação de riqueza – a partir de 2003 – investiu contra governos democráticos como o de Dilma, em 2016, e abraçou abertamente políticos de extrema direita, como Trump, Milei e Bolsonaro. Esta contraofensiva ideológica da burguesia – que mantem a extrema direita como um horizonte possível a manutenção de seus privilégios – pegou o campo popular desprevenido. Até porque muitas das energias foram investidas na luta institucional, sob o argumento de fazer avançar as conquistas dos movimentos que, malgrado as boas intenções, foram minguando. Isso fez com que – pegando o esquema de Gramsci – muito se tenha crescido em termos de sociedade política (partidos, mandatos, cargos executivos) e pouco se tenha avançado em termos de sociedade civil (sindicatos, movimentos, associações, coletivos culturais etc).

Não quero aqui dizer que não houve avanços e conquistas com o ciclo de governos democráticos dos anos 2000 (Lula e Dilma). Apenas que estes avanços não conseguiram por freios ao processo regressivo da burguesia e de financeirização da economia brasileira. Este cenário teve impacto na dinâmica das lutas camponesas. Antes latifúndios, hoje “fazendas produtivas a serviço do agronegócio”. Antes acampamentos e assentamentos com práticas inovadoras de produção e na educação, hoje, movimento de “políticos profissionais” e “improdutivos”. Não é possível contrapor-se a ideologia dominante apenas no plano do discurso como se tratasse de uma “esgrima intelectual” em que ganha quem tem o melhor argumento. Mas de um discurso baseado na práxis, no exemplo, na atitude e, sobretudo, na luta. Neste sentido, a luta é o elemento pedagógico básico de qualquer confrontação bem sucedida com a classe dominante. Desta maneira, a nova atitude do negro e da negra – em que este assume sua condição racial e não nega o confronto com os racistas – não pode ser visto como algo menor e sem importância do ponto de vista da luta camponesa. Ela deve redimensionar os horizontes da práxis, ampliar o campo de diálogo e de alianças, fortalecer programas e ações capazes de empolgar parcelas cada vez mais significativas da classe trabalhadora. Não podemos, por exemplo, ignorar como o racismo impacta da dinâmica das classes do Brasil, como o latifúndio se alimenta desse, como o “negro drama” nada mais é que o drama do setor mais explorado da classe trabalhadora.

Vivemos um país em que, como legado dos governos democráticos dos anos 2000 (Lula e Dilma), a população pobre e negra chegou aos bancos das universidades públicas e disputa vagas em carreiras públicas mas ainda não percebemos o potencial radical e renovador deste setores à luta camponesa. A manutenção da política neoliberal e de desinvestimento público, assim como o incremento da política de guerra às drogas e encarceramento em massa, ocorre ao mesmo tempo de um maior reconhecimento do protagonismo da população negra. Esta contradição tem um potencial transformador ainda mais avaliado pelo conjunto das esquerdas. Não falo aqui, estritamente, em termos de luta institucional – o que é muito importante – mas de formação de uma nova vanguarda de caráter popular, nacional e revolucionária – que seja capaz de a partir de experiências e práticas concretas, reestabelecer o debate sobre o caráter estratégico da revolução brasileira a partir da luta camponesa. A luta do movimento negro, das comunidades tradicionais, ambiental, dos quilombolas, dos povos das águas, da floresta e dos povos indígenas conformam o mesmo campo popular das lutas camponesas, do movimento sem teto e do movimento sindical. É evidente que precisamos de vitórias táticas, que passam pela derrota eleitoral e política da extrema-direita, dentro de uma política de frente ampla; mas é preciso situar também quais são nossos objetivos estratégicos e que papel jogaremos no próximo ciclo de reorganização da esquerda brasileira e, dentro dela, qual a contribuição da luta camponesa em seus diversos quadrantes.

Resumindo: não há socialismo sem “sementes socialistas”; sem práticas socialistas e disputa de valores socialistas a partir de uma práxis que é ação coletiva e não falatório vazio de “salvadores da pátria”. Neste sentido, trazer para o terreno da luta camponesa a experiência da luta antirracista tem impactos positivos tanto para os movimentos camponeses como para os movimentos negros e a população negra em geral. Basta lembrar que o último Censo já sinaliza um aumento significativo dos que se autodeclaram negros (55,2%, somando pretos e pardos) e, proporcionalmente, dos que se autodeclaram indígenas (0,7% ou 1,7 milhões, um aumento de 85% em relação a 2010). As projeções indicam que observaremos um incremento da população negra e indígena no Brasil, o que tem se manifestado também no processo de renovação política das lideranças da esquerda brasileira. Tudo isso é muito positivo; mas precisamos de um contraponto prático às investidas do capital. As classes dominantes e a burguesia tem incrementado as políticas de financiamento privado para angariar a simpatia dos setores negros emergentes ao “neoliberalismo progressista”. Pesa contra ainda, sobre setores da esquerda, o histórico negacionismo da questão racial no Brasil, que prefere reproduzir o mito patriarcal da “democracia racial” e do “bom senhor de escravos”.

Quero terminar minha exposição falando da importância do pensamento de Clóvis Moura, que em 2025, completaria 100 anos. Este intelectual orgânico da classe expropriada, dos condenados da terra, bateu na tecla de que a luta antirracista é parte integrante da luta de classes no Brasil. Não há como pensar uma sem a outra. O movimento negro, desde os quilombos até hoje, sempre investiu energias em experiências de vida e sociabilidades comunitárias, que foram violentamente atacadas pelas classes dominantes. Em muitas delas, como em Palmares, procuraram reconstruir no Brasil, as condições comunitárias de produção e existência que trouxeram em África, muitas delas destruídas pela imposição do modelo de “desenvolvimento colonial-escravista.” (Recomendo a leitura de Como a Europa Sub-desenvolveu a África, de Walter Rodney). Não se trata aqui de assumir o exotismo ou um utopismo piegas e abstrato, mas reconhecer outras matrizes de desenvolvimento econômico e político que podem ser as bases de uma sociedade emancipada da exploração do trabalho, do latifúndio e do racismo. Uma sociedade sem classes e que afirme valores próprios de igualdade e solidariedade. Porque não aprender com as práticas culturais de origem africana e indígena tão difundias em nossas periferias e entre os camponeses? Para isso é preciso recuperar a perspectiva contra-hegemômica em sentido amplo. Pensar a nossa educação política a partir da práxis e a disputa de valores socialistas em coalizações e a alianças entre os oprimidos que tenham o potencial de se tornarem em espaços da construção de um projeto de uma democracia popular.

*Fábio Nogueira, professor da UNEB e militante da Ação Negra.

Compartilhe!

Assuntos relacionados

Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

últimas

Instagram
Twitter
YouTube
WhatsApp
Facebook