Nos anos 80 e 90, o tele-evangelismo invadiu as programações das rádios e da TV […]

Nos anos 80 e 90, o tele-evangelismo invadiu as programações das rádios e da TV aberta. Nele o testemunho se apresentou como meio de conversão de novos fiéis ao investir no diálogo a partir da experiência concreta dos indivíduos, seus sofrimentos e dores. Isso tornou, em alguns anos, o evangelismo, no geral, e o neopentecostalismo, em particular, um fenômeno de massas com desdobramentos políticos até os dias atuais. Tratou-se portanto de traduzir a dor e o sofrimento como experiências individuais, perdendo-se a sua dimensão coletiva e raízes sociais.

Por que eu chamo atenção para isso? Está correto o Professor Dennis Oliveira ao afirmar que se está perdendo a dimensão estrutural do racismo [2]. Uma política de identidade baseada exclusivamente nos “testemunhos”, nas histórias de vida, trajetória e etc. não se contrapõe as bases da reprodução do capital. Falar em primeira pessoa das dores e sofrimentos e dos casos pessoais de racismo – tal qual como os testemunhos dos tele-evangelismo – parece ser condição mas, por si só, é insuficiente para entender o fenômeno do racismo como um todo.

Michelle Alexander em seu livro a expansão do sistema prisional e o encarceramento em massa da população negra nos Estados Unidos mostra que esta ocorreu no mesmo momento em que as políticas de ação afirmativa eram implementadas. Algumas cidades norte-americanas registram de 10% e 20% da população negra, jovem e masculina encarcerada. Algo absurdo e inimaginável em um período relativamente  recente como a década de 1950.

Não estamos assistindo algo similar ocorrer hoje no Brasil? Não basta dar “testemunhos” e ter bons representantes em espaços anteriormente branqueados (universidades, política, mídia etc). É preciso superar o racismo como um todo. Para enfrentar o racismo estrutural são necessárias lutas e ações coletivas que exigem mais que posts nas redes sociais. Michele Alexander insiste em seu trabalho que as políticas de ação afirmativa, apesar de importantes, não impediram nos Estados Unidos que a vida da maior parte da população negra tenha piorado, seja em termos econômicos como renda e emprego seja com recrudescimento da violência policial e a promoção a níveis absurdos o encarceramento de negros e pobres, dado o caráter racista do sistema de justiça criminal norte-americano. Isso significa que não é importante eleger políticos negros e negras e ocupar os espaços institucionais? Não necessariamente. Mas é importante que ao ocuparmos estes espaços institucionais afirmemos um projeto de poder alternativo a ordem dominante e não nos limites desta. Este projeto coletivo é mais do que o somatório de desejos individuais e ativismos; mas o resultado de uma experiência teórico-prática coletivizada. A aprovação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de uma ação do PSOL da proporcionalidade da distribuição de recursos do fundo eleitoral entre candidatos negros e brancos é algo extremamente positivo porque corrige uma distorção histórica [4].

Com a tendência de aumento da representação política negra é preciso definir estratégias coletivas de aquilombamento da institucionalidade colonial e burguesa o que só é possível quando compreendemos que o racismo é histórico e estrutural. A base do capitalismo encontra-se no escravismo, não como uma etapa de um passado distante mas como uma estrutura social vinculada até os dias sociais ao capital em países de economia periférica e dependente [5]. Logo, o racismo ocupa um lugar central no modo de produção do capital. Todo o capitalismo é racial. A experiência histórica de nossa classe explorada e despossuída faz-nos ir além da ideia de “raça e classe” como pares dialéticos. Raça é classe, ou seja, a experiência concreta da exploração capitalista nas sociedades de capitalismo dependente como a brasileira nos fez viver a classe a partir da raça.

Vamos citar, por exemplo, a cidade Salvador. A diferença entre as famílias mais ricas de mais pobres de Salvador é de 61 vezes [6]. Em Salvador a desigualdade tem cor e tem gênero. São duas dimensões constitutivas da formação da classe ou da formação dos sistemas de opressão que são funcionais a reprodução da lógica capitalista. Então o que vai romper com essa dinâmica além da garantia da representação negra nos espaços de poder é apresentação de projetos políticos que avancem em combater uma expressão objetiva do racismo estrutural: a concentração de riqueza em mãos brancas. Este é o sentido do projeto de aquilombamento: subverter as hierarquias raciais e de gênero através de formas alternativas de produção e distribuição equitativa da riqueza socialmente produzida.

Em 2017, houve uma polêmica nas redes sociais sobre apropriação cultural que envolvia o direito ou não de pessoas brancas usarem o turbante, um símbolo da cultura afro [7]. Mas para além deste debate individualizado – que pressupõe um negro e um branco abstratos e não como construções históricas do próprio capitalismo – porque pouco se fala, por exemplo, da apropriação cultural do Carnaval de Salvador? Quem ganha com o carnaval de Salvador? Não é a população negra e pobre dessa cidade. Quem ganha e lucra é um pequeno grupo de empresários que ocupam o Estado, no sentido forte do termo, para privatizar espaços públicos e se valer dos investimentos do estado. Por outro lado são os trabalhadores ambulantes – majoritariamente negros e negras – as maiores vítimas deste controle privado do circuito carnavalesco [8]. Enquanto isso, camarotes particulares ocupam áreas públicas e empresários se divertem e lucram sem maiores constrangimentos [9].

Salvador é uma das principais cidades do país a receber turistas e existe toda uma indústria do carnaval [10]. Essa indústria se baseia na exploração do trabalho negro e na mercantilização da cultura negra. Ao contrário do que afirmam as autoridades e a imprensa, apenas uma pequena parte da riqueza produzida pelo Carnaval vai para bolso da população negra e, no mais das vezes, para ter alguma renda esta tem que se submeter jornadas penosas e insalubres de trabalho, sem nenhum tipo de proteção social [11].

Portanto, é necessário romper com o atual modelo de Carnaval. Não é apenas para garantir representatividade – até porque nele nós a temos ainda que mercatilizada e folclorizada. Trata-se de entender como a nossa cultura é consumida e mercantilizada para produzir a riqueza do branco enquanto o preto e a preta são explorados e continuam pobres. Então o debate deve ocorrer fundamentalmente em torno da apropriação da riqueza gerada pelo Carnaval em que a mercantilização da cultura negra é reflexo do processo histórico do próprio capitalismo. Esta é uma questão chave a ser enfrentada para termos uma “democracia que chegue na periferia”, algo que a Rede Quilombação se refere há anos [12].

Este neoliberalismo progressista [13] promove ações afirmativas em que nos resta produzir relatórios para dizer o quanto a nossa ação ou projeto “impactou” (20, 50 ou 100 jovens negros?) sem que isso altere significativamente a concentração de renda que permanece absurdamente racializada, tendo os brancos no topo e os negros na base da pirâmide social [14]. Até porque para muitos bancos, como é o caso do Itaú [15], estabelecer uma pequena parte dos lucros para promover “ações afirmativas” e de “empoderamento” tem o objetivo de financeirizar nossas lutas e história de resistência. Promover a diversidade é um ativo potencialmente lucrativo [16] em um mercado de consumidores negros e, por efeito, empresas e bancos capitalistas incidem para que a experiência racial – que é a forma como vivemos a classe no Brasil – converta-se em uma mercadoria e perca sua radicalidade política.


[1] O presente artigo se baseia na intervenção que fiz na Mesa Redonda: Construindo uma Plataforma Política Contra o Racismo do XI Congresso Nacional de Pesquisadores Negros (COPENE) em 10 de novembro de 2020. A mesa contou com a participação de Dennis Oliveira, Anita Benitez e Ângela Guimarães. Agradeço a transcrição de Caroline dos Santos Lima, Graduanda em Serviço Social (UNOPAR). Email: [email protected]

[2] Oliveira, Dennis. Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Editora Dandara, 2021.

[3] Alexander, Michele. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2018.

[4] Ministro determina aplicação imediata de incentivos às candidaturas de pessoas negras definidos pelo TSE. http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=451416&ori=1

[5] Souza, Cristiane Luíza Sabino. Racismo e luta de classes na América Latina. São Paulo/Porto Alegre: Editora Hucitec, 2020.

[6] “Residências ricas de Salvador tem renda 61 vezes maior que as mais pobres” https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/residencias-mais-ricas-em-salvador-tem-renda-61-vezes-maior-que-as-mais-pobres/

[7] “Turbantes e apropriação cultural”. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/turbantes-e-apropriacao-cultural/

[8] “Ambulantes podem retirar mercadoria apreendidas durante o carnaval hoje” https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/ambulantes-podem-retirar-mercadoria-apreendidas-durante-o-carnaval-hoje/

[9] “O prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), renovou por cinco anos um contrato que cede o uso de uma praça da cidade para instalação de camarote, durante o Carnaval, cuja empresa dona tem um primo dele entre os sócios. Considerado um dos mais luxuosos do Carnaval da capital baiana, o Camarote Salvador fica no bairro de Ondina e pertence à Premium Entretenimento, que tem entre os donos Luís Eduardo Magalhães Filho. O camarote abriga até 5.000 pessoas por dia, com ingressos que chegam a custar R$ 1.890.” https://www.bemparana.com.br/noticia/acm-neto-renova-concessao-de-praca-para-camarote-de-primo-no-carnaval#.YPHhdehKjIU

[10] Em 2016, a imagem de duas crianças dormindo em caixas de isopor enquanto os pais trabalhavam no circuito do Carnaval em Salvador chamou a atenção a ausência de condições de trabalhos mínimas a que as famílias negras são submetidas durante o evento. https://www.bnews.com.br/noticias/principal/carnaval/136075,criancas-dormem-em-caixas-de-isopor-no-carnaval-de-salvador.html

[11] As estimativas para o Carnaval de 2020 em Salvador feitas pela Prefeitura (cancelada pela pandemia) projetavam que a festa movimentaria R$ 1,8 bilhões na economia da cidade. https://glamurama.uol.com.br/carnaval-dos-carnavais-de-salvador-vai-movimentar-r18-bilhao-e-receber-430-mil-turistas/

[12] http://periferiaemmovimento.com.br/roda-de-conversa-discute-por-que-democracia-nao-chegou-na-periferia/

[13] Dennis Oliveira faz referência  ao conceito de “neoliberalismo progressista” da filósofa Nancy Fraser. Segundo Oliveira, “Para Fraser, esse movimento do neoliberalismo progressista foi uma forma de construção de um bloco de poder nos Estados Unidos nos anos 1980 em que, ao mesmo tempo que impunha um modelo econômico de concentração (portanto, não redistribuição de riquezas), combinava com o reconhecimento da diferença (de gênero, classe, etnia) dentro da perspectiva da meritocracia, valor caro ao american way of life. É com base nisso que ideias como “empoderamento”, “diversidade”, “ambientalismo”, entre outros passam a fazer parte do vocabulário não apenas político, mas da gestão de negócios.” https://racismoambiental.net.br/2020/09/06/sobre-identitarismos-antirracismos-e-lugares-de-fala-por-dennis-de-oliveira/

[14] “Desigualdade aumenta no Brasil, e 1% da população concentra 50% da riqueza.” https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/06/24/distribuicao-riqueza-nacional—brasil.htm

[15] “Itaú lucra R$ 18,91 bilhões em 2020.” https://spbancarios.com.br/02/2021/itau-lucra-r-1891-bilhoes-em-2020 Em contrapartida, o Itaú se arroga o fato de “Há sete anos, o banco apoia o empreendedorismo feminino por meio do Programa Itaú Mulher Empreendedora, que tem como missão desenvolver negócios geridos por mulheres. As soluções do programa visam inspirar, capacitar e conectar as líderes de empresas. Somente na sua plataforma online, até 2020, foram mais de 25 mil inscritas, e mais de 260 mil pessoas que visualizaram os mais de 700 conteúdos disponíveis, como ferramentas, cases e artigos sobre gestão, marketing, finanças, inovação, liderança,
além de cursos online e programas de aceleração. O programa é aberto e gratuito, disponível em www.imulherempreendedora.com.br. Uma iniciativa de destaque, e que corrobora a iniciativa de desenvolvimento de regiões e mulheres em vulnerabilidade, foi a edição de Aceleração de Apoio a Micronegócios, com foco em mulheres negras e indígenas das regiões Norte e Nordeste do país, em parceria com a organização Diver.SSA. Realizado de novembro de 2020 a fevereiro deste ano, foram 87 horas de capacitação, contemplando 30 empreendedoras em uma Jornada de Acolhimento Estratégico. Dez delas continuaram no programa para imersão
na Jornada de Aceleração e seis empreendedoras também foram contempladas com um investimento semente de R$10 mil reais cada.” In: Itaú Unibanco capta US$ 400 milhões com Banco de Desenvolvimento dos EUA
com objetivo de expandir o crédito para PME (grifos meus, documento disponível em: www.itau.com.br/empreendorismo).

[16] “Diversidade dá lucro, dizem criadores de programa de trainees do Magalu.” https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/01/18/equipes-diversas-fazem-diferenca-nos-negocios-das-empresas-diz-analista.htm

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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