O movimento negro brasileiro, como parte de uma tradição radical negra com história e identidade próprios, gestou durante séculos de resistência ao escravismo, colonialismo e capitalismo, projetos e alternativas coletivas de fortalecimento de nossa identidade e construção de espaços de contrapoder que Clóvis Moura e outros autores identificaram nos quilombos sendo, o mais emblemático deles – por ter durado um século – o Quilombo dos Palmares.
O movimento negro brasileiro, como parte de uma tradição radical negra com história e identidade próprios, gestou durante séculos de resistência ao escravismo, colonialismo e capitalismo, projetos e alternativas coletivas de fortalecimento de nossa identidade e construção de espaços de contrapoder que Clóvis Moura e outros autores identificaram nos quilombos sendo, o mais emblemático deles – por ter durado um século – o Quilombo dos Palmares.
Havia de destacar, portanto, como o quilombo subsistiu como uma formação social concreta apesar do colonialismo monocultor e agroexportador que se constitui pela imposição do escravismo e de um modo de produção em que a racialização da força de trabalho escravizado era condição sine qua non a sua reprodução. Desta maneira, o quilombo é uma possibilidade alternativa de organização das relações de produção e da economia, de bases coletivistas e comunitárias, não baseadas na exploração do trabalho e na apropriação privada do excedente econômico. Esta perspectiva quilombola era contraditória com o modo de produção do capitalismo racial e dependente que, por sua vez, nasceu da convergência entre a mundialização do capital – que tem seu primórdios com o mercantilismo no século XVI – e o escravismo.
Diante de tal realidade as elites brasileiras forjaram o “mito da democracia racial”, poderoso significante que se por um lado abria possibilidades de integração aos não-brancos à uma nação mestiça, por outro, sepultava as pretensões de emancipação do negro como povo e classe dominada e promovia o embranquecimento como ideal a ser seguido pelo conjunto dos não-brancos em uma sociedade que nos anos 1930 iniciou um vigoroso movimento de industrialização de sua economia. Este movimento se traduziu para a população negra como um aumento nas oportunidades sociais e a possibilidade de romper os limites de um modo de vida em que o latifúndio e o tradicionalismo cultural e políticos punham freios as bases comunitaristas do projeto quilombola. É o que dará ânimo ao surgimento de organizações negras com bases de massa a exemplo da Frente Negra Brasileira (1931-1937) e da União dos Homens de Cor (1943-1960) e de organizações negra de novo tipo como o Teatro Experimental do Negro (1944-1961). Estas organizações, por sua vez, são herdeiras da articulação entre as lutas quilombolas, principalmente daquelas que surgem a partir do escravismo tardio (pós-1850) – e as lutas de abolicionistas negros radicais como Luís Gama (1830-1882) no que Clóvis Moura denominou como quilombagem. Ou seja, não partem do nada mas de um processo de articulação entre lutas negras do presente e do passado que se convencionou chamar de resistência negra.
Independentemente de suas origens é no Brasil do século XX que a democracia racial ganha ares de ideologia de estado, principalmente, a partir da ditadura Vargas (1937). Com o “intervalo democrático” (1945-1964), a democracia racial é traduzida em termos de um contrato político em que brancos e negros poderiam construir de forma solidária um país politicamente e economicamente autônomo, o que ruiu com a ditadura cívico-militar (1964-1984). A democracia racial se torna ideologia do estado ditatorial que promoveu a perseguição e eliminação de seus adversários e o fechamento com os canais de diálogo com o movimento negro por considerá-lo um elemento subversivo. O protesto negro do final dos anos 1970 e começo dos anos 1980 encontrou nos processos de independência de Angola, Moçambique e Guiné Bissau, na estética e conteúdo políticos dos afro-americanos e no marxismo as suas principais linhas de resistência.
Em 1989, a ida de Lula ao segundo turno e sua derrota para Collor – com apoio da Globo – fez com que a perspectiva do socialismo democrático centrado na radicalidade do projeto popular liderado pelos movimentos sociais fosse gradativamente substituído por uma maior centralidade na luta institucional e os acordos por dentro do espectro político brasileiro para fins de vitórias eleitorais do campo progressista que tinham como objetivo dar governabilidade as gestões e mandatos populares. A vitória de Collor, por sua vez, foi o início da implantação do neoliberalismo no Brasil que nos governos de Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) tornou-se hegemônico e verdadeira cláusula pétrea da economia neoliberal mesmo nos governos progressistas de Lula e Dilma e perdura até os dias de hoje.
A desertificação do debate econômico e o novo momento político terá impacto no movimento negro. Ao invés da recusa in totum do capitalismo e a afirmação das bases comunitaristas dos quilombos e do projeto palmarino, uma cosmovisão liberal passou a ganhar força no meio negro: era possível compatibilizar os interesses da comunidade negra e os do mercado capitalista a partir de ações pontuais ou focais. Este gradualismo antirracista se estabelece quando da formação das ONG´s e assessorias especializadas no tema racial se constituindo um novo campo profissional e de ativismo que se distanciava das esquerdas e da perspectiva socialista. Também as promessas do socialismo africano em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, país lusófonos, não haviam se cumprido e com eles o fim da URSS (1992) parecia deixar bem evidente que o socialismo como tal não era uma possibilidade que dialogasse com a realidade concreta da população negra. É justamente quando da consolidação do neoliberalismo que, Fernando Henrique Cardoso, cria o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra e o Brasil passa a ser signatário das resolução da Conferência de Durban. Denis Oliveira chama este processo de “trágica coincidência”[1].
Com a desarticulação da economia nacional – desindustrialização programada e, por conseguinte, a dependência do capital financeiro e do agronegócio – as oportunidades de desenvolvimento econômico foram se tornando cada vez mais rarefeitas e dependendo dos humores do mercado mundial e menos da política econômica praticada no Brasil. A característica de nossa formação econômico-social de um capitalismo dependente que articula em sua reprodução trabalhadores formais e informais se aprofundou. Temos a partir do que Lélia González caracterizou como um “exército industrial de reserva”, dialogando com as ideias de Marx, a partir da desarticulação do trabalho fabril e a intensificação da expropriação da propriedade da terra de pequenos e médios agricultores, ribeirinhos, quilombolas e povos indígenas, pelo agronegócio, a conformação de um conjunto de trabalhadores sem trabalho que passaram a viver por conta própria. Segundo o IBGE este setor equivale hoje a 24,3 milhões de brasileiros em que negros e mulheres estão sobre representados.
Apesar de em termos numéricos representarem mais que muitas nações e ter um peso considerável na economia brasileira, este não é um grupo homogêneo mas internamente clivado por diferentes condições de classe, gênero e raça[2]. Rapidamente os setores que representam o grande capital traduziram as aspirações deste potencial campo da economia a partir de sua gramática gerencial que nada mais é que sua ideologia política. Empreendedorismo, mindset, approach e outros termos inundaram as redes de uma economia com forte ligação com a experiência das classes populares e passou a integrar a órbita de grandes empresas privadas, algumas multinacionais, se colocando como promotores de uma política de diversidade. O que antes era o “bico” ou “emprego informal” ganhou o nome de empreendedorismo e o trabalhador precarizado passou e se ver e ser visto como empreendedor.
No plano ideológico e cultural, o liberalismo negro definiu novas formas de ativismo político. Saem os projetos coletivos e entram em cena das representações individuais das pautas coletivas que tem nos novos meios de comunicação, as redes sociais, gerenciadas e controladas pelas Big Techs, um espaço para o fortalecimento de valores e uma visão empreendedora da luta antirracista em que as antigas entidades negras, surgidas nos anos 1980, perdem centralidade como vocalizações coletivas das aspirações do meio negro. Curiosamente, este ativismo self-made – que enfrentou nas redes a extrema direita – é hostil a organização política, coletiva e partidária negra, mesmo sendo parte do plano de negócios das Big Techs que definem a partir da forma-algoritmo como, quem e se determinado grupo pode ter acesso ou não às informações compartilhadas naquele espaço[3].
É evidente o limite de querer que a economia popular periférica, preta e feminina por definição, se lance em querer assimilar os termos utilizados por grandes corporações privadas que tem como fonte de lucros a racialização e precarização do trabalho negro. Esta aposta nunca conseguiu reduzir a abissal distância entre ricos e pobres, inclusive em países como os Estados Unidos. Ao contrário, o que se verificou foi o aprofundamento das desigualdades no interior da comunidade negra sem que isso significasse alteração significativa da concentração da renda nas mãos de ricos e super-ricos. Desta maneira, o que está por trás da proliferação de “ismos” no meio negro (colorismo, afroempreendedorismo, afropessimismo, afrofuturismo etc) nada mais é que a superfície de um fenômenos de raízes bem mais profundas: como as formas gerenciais e midiáticas estabelecem seu próprio conteúdo e valores – liberal, capitalista e competitiva – na conformação das comunidades imaginadas negras, ou seja, colonizam os imaginários sociais e fetichizam seu conteúdo político ao convertê-los em sua forma-mercadoria. Uma alternativa (entre outras) a este processo, em meu ponto de vista, é retornarmos ao quilombo não como símbolo mas como formação histórico-social e concreta, extraindo desta experiência todo o seu potencial contra-hegemônico e revolucionário. Não se trata de entender o quilombo (Beatriz Nascimento), o quilombismo (Abdias do Nascimento) e a quilombagem (Clóvis Moura) como filosofia, metafísica negra que repõe uma subjetividade quebrada e cindida pela experiência do racismo. Ao contrário, é preciso entendê-lo como uma alternativa real e concreta de articulação socioeconômica e cultural que articulou formas de propriedade coletiva da terra, valores e práticas culturais de origem africana e indígenas com sentido ético e humanista contraditórios com a exploração do trabalho e o colonialismo e, por fim, a dimensão da territorialidade.
[1] Oliveira, Dennis. Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Editora Dandara, 2021.
[2] Ver o excelente estudo: Mick, Jacques; Nogueira, João Carlos. Viver por conta própria. Como enfrentar desigualdades raciais, de classe e gênero e apoiar a economia popular nas periferias brasileiras. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2023.
[3] Faustino, Davison; Walter Lippwold. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo, Boitempo, 2023.
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