Em editorial publicado no dia 06 de março, a Folha de São Paulo, nos brindou […]
Em editorial publicado no dia 06 de março, a Folha de São Paulo, nos brindou com uma volta ao passado, digna da trilogia “De volta para o futuro” dirigido por Robert Zemeckis e produzido por Steven Spilberg. Com base nos questionamento aos critérios da banca de heteroidentificação do vestibular da USP à estudantes autodeclarados pardos que não foram contemplados pelas cotas raciais, a Folha de São Paulo retoma surrados argumentos em torno da subjetividade dos critérios de avaliação sobre cor/raça no Brasil e que, para encerrar a conversa, só as cotas sociais bastariam. Foi a mesma Folha de São Paulo que, ao anunciar o resultados do Censo de 2022, fez alarde e destacou que o “pardos” isoladamente seriam o maior grupo racial do Brasil, ignorando o fato de que o movimento negro interpreta politicamente estas categorias do IBGE tomando “pretos” e “pardos” como negros[1]. A Folha de São Paulo que vem atuando no sentido de reduzir as desigualdades raciais da empresa, através de programas de trainee, é contraditória quando desconsidera a trajetória do protesto negro brasileiro e paulista que, em termos mais recentes, tem mais de 100 anos de lutas e contribuições intelectuais e políticas.
A posição da Folha de São Paulo contra as cotas raciais – e nem cogitou, diga-se de passagem um aperfeiçoamento do trabalho das bancas de heteroidentificação – escancara um antirracismo de conveniência que amealha algumas mentes liberais. Este liberalismo na periferia do capitalismo, apesar de suas pompas e autocomplacência, num retrato que se assemelha a nobreza russa do tempo do Czar, tão bem retratada por Dostoievski, é democrática no que diz respeito às manifestações culturais negras (até “as tolera” em sentido mais preciso); porém no que se refere a acesso à direitos é essencialmente autoritária. Nisso são muito próximo dos conservadores e tem com eles muita identidade quando se refere a garantir à população negra acesso a direitos sociais básicos (saúde, educação, emprego, terra e moradia). Quando o antropólogo Kabengele Munanga afirmou que no Brasil “o racismo é um crime perfeito” chamava a atenção a fato de que o racismo é um crime sem autoria. Desconhece-se os direitos da vítima porque não há culpados. O mito da democracia racial, denunciado desde os anos 1930, pela imprensa negra de São Paulo, e estudada por Roger Bastide, Florestan Fernandes e Clóvis Moura, tem como uma de suas origens Casa Grande e Senzala, célebre estudo de Gilberto Freyre, publicado em 1933.
O movimento negro brasileiro não se insurgiu contra o Jim Crow ou a doutrina do “iguais mais separados” que se praticou nos Estados Unidos. As nossas elites implementaram um processo de imigração europeia no pós-abolição e tentaram enveredar por este caminho. Mas ele não foi o escolhido pela própria força e resistência da população negra e indígena. Portanto, democracia racial conseguiu converter-se em um elemento de coesão nacional, amortecer conflitos raciais e como ideologia de embranquecimento da população negra brasileira. Sem consciência de que é negra, não há reivindicação de direitos possível. Ser pardo, portanto, para a Folha de São Paulo, mostra o quão seria subjetivo o racismo no Brasil. A Folha faz tábula rasa de como os processos de racialização permearam e permeiam nosas instituições e relações econômicas (pensadas aqui, como em Marx, em termos de uma economia política). Da defesa de estudantes “pardos” injustiçados a Folha de São Paulo insurge-se contra as cotas raciais, o que é por si só uma contradição.
Colocar “pardos” contra “pretos” é a nova estratégia em torno do mito da democracia racial. Trata-se de deslegitimar às reivindicações do movimento social negro aproveitando-se da brecha do “colorismo”. Em termos estatísticos, “pretos” e “pardos” tem muito mais em comum entre si do que em relação aos brancos, este sim um pólo que tomado contrastivamente revela uma estrutura social desigual econômica e racialmente. Ao mesmo tempo, tem que se reconhecer o caráter recente das políticas de ação afirmativa em contraste com séculos de uma ideologia de embranquecimento que permeou a escravidão, o colonialismo e nosso capitalismo dependente. Também, deve-se levar em consideração que os problemas que dizem respeito aos critérios de uma banca de heteroidentificação referem-se a uma proporção muito pequena da população negra em geral, com impactos bem menores, por exemplo, que a política econômica neoliberal de “austericídio” defendida com unhas e dentes pela Folha e está por trás do desemprego, do aumento da miséria, da pobreza e da extrema pobreza, que corrobora para a violência e extermínio nas comunidades negras e periféricas em nosso país. O crescimento das milícias e sua ramificação na política, o aumento descontrolado do encarceramento, o assassinato sistemático de jovens negros em nossas comunidades, chamam menos atenção que os pretensos “erros” de uma banca de heteroidentificação.
Há os nostálgicos da Casa Grande e Senzala, e os liberais da periferia do capitalismo, que a Folha de São Paulo representa expressam uma inclusão de fachada que até exercita alguma empatia às nossas reivindicações, esforça-se em promover a diversidade mas mantém-se fiel a reprodução de um sistema econômico e político que sobrevive graças a nossa exclusão. Dividir para dominar, este é o mantra liberal-colonialista. Promover o estranhamento e as divisões entre “pardos” e “pretos” é a melhor maneira de manter intacto os interesses e os privilégios dos de cima. Por isso, afirmar que somos o que somos – negros – é muito perigoso para os que sempre estiveram em posição de definir o que somos. Somos nós, negros e negras, que definimos coletivamente nossas estratégias de superação do racismo.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/12/pardos-ultrapassam-brancos-e-sao-o-maior-grupo-etnico-racial-no-brasil-aponta-censo.shtml
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