Alguns analistas e críticos de esquerda aproveitaram o fato de a embaixadora dos EUA nas […]

Alguns analistas e críticos de esquerda aproveitaram o fato de a embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield, uma mulher negra, ter vetado a proposta de cessar-fogo humanitário na Faixa de Gaza feita pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU para desqualificar a campanha do movimento negro brasileiro por uma mulher negra no STF. No entanto, esses mesmos setores se silenciam em relação à posição majoritária das organizações e ativistas do movimento negro brasileiro em apoio e solidariedade à Palestina. Organizações como Ação Negra, Coalizão Negra por Direitos e Convergência Negra produziram notas de solidariedade à Palestina, denunciando a política de genocídio e limpeza étnica contra os palestinos na Faixa de Gaza. Militantes que se identificam com o movimento negro utilizaram suas redes sociais para publicar mensagens de apoio e solidariedade aos palestinos, promover lives e divulgar informações que rompessem com o cerco midiático da mídia hegemônica brasileira, que praticamente só cobriu os fatos a partir da perspectiva dos Estados Unidos e do governo de Israel. Além disso, muitos militantes negros organizaram atos de rua, levando as bandeiras de suas entidades e identificando-se com a dor e o sofrimento do povo palestino, que é acossado pela máquina de guerra sionista.

Mas porque é tão importante para o movimento negro brasileiro a defesa da Palestina?

Em primeiro lugar, por questões históricas. De acordo como a Alma Preta, nos anos 1980, a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) articulou na cidade de São Paulo sua primeira manifestação pública da instituição, no Teatro Ruth Escobar quando grupos pró-Israel invadiram e tentaram tumultuar o encontro com gritos e agressões físicas. De acordo com a matéria, “Militantes do MNU como Abdias no Nascimento, Antônio Leite, Eduardo de Oliveira e Oliveira e outros militantes de organizações negras, mobilizaram-se para participar da reunião e, junto dos palestinos, garantir a fala da OLP. Apesar das brigas e tensões, o resultado foi assegurado, e uma união política foi estabelecida”[1]. Este fato criou um laço entre o movimento negro brasileiro e a luta palestina que permanece até os dias atuais, fato ignorado por aqueles que preferem deslegitimar o movimento negro por ter lançado uma campanha por uma mulher negra no STF (Supremo Tribunal Federal).

Em segundo lugar, historicamente sempre se procurou deslegitimar o movimento negro como um movimento importado dos Estados Unidos, o que não é verdade. Esta foi inclusive a forma como a ditadura civil e militar de 1964 tratava em seus documentos internos a militância negra que se organizava em grupos de estudos, políticos e culturais como os Chic Show´s e a Black Music.[2] Porém este tipo de leitura – além de ser incorreta – desconhece as múltiplas influências que historicamente estiveram na base do protesto negro brasileiro. Nos anos 1950, com o Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento podemos falar da influência do movimento da negritude francófona e de pensadores do Albert Camus e Franz Fanon. Nos pós-ditadura, na formação do Movimento Negro Unificado, o Afro-Latino-América, que era uma publicação do jornal alternativo Versus e foi uma das tribunas do movimento negro na época refletia um entusiasmo com os movimentos de libertação africanos – particularmente com o MPLA, de Angola e a FRELIMO, em Moçambique, de orientação marxista – a solidariedade com o Congresso Nacional Africano (CNA) e a luta pela libertação de Nelson Mandela, seu principal líder e com o povo da Namíbia em sua luta contra o controle do regime do Apartheid Sul Africano[3]. Até mesmo uma entrevista do militante pan-africanista e pensador marxista CRL James com León Trotsky, traduzida do francês, pelo jornalista Flávio Carranza circulava entre os fanzines e jornais da imprensa alternativa que animavam a militância negra de então. O fato de Israel, e dos Estados Unidos, apoiarem e darem suporte financeiro e militar ao regime do Apartheid na África do Sul, contribuíram para que o movimento negro brasileiro desde sempre criticasse as políticas sionistas e colonialismo do Estado de Israel contra o povo palestino. Esta posição foi corroborada pelo posicionamento em apoio a Palestina de ícones da luta antirracista dos Estados Unidos como Malcom X e Ângela Davis.

Em terceiro lugar, é importante lembrar que Israel é uma potência militar que exporta de armas atende aos interesses norte-americanos no Oriente Médio, região rica em Petróleo. Os caveirões a serviços das tropas especializadas que sobem os morros do Rio e as periferias de São Paulo são em sua maioria fabricados em Israel[4]. O cerco que as tropas israelenses fazem aos territórios palestinos podem ser comparados com a militarização das favelas e áreas pauperizadas pelo Estado brasileiro em nome da Guerra às Drogas e combate ao crime organizado. Somos afinal, o país que matou, em 2022, 47.503 pessoas, sendo destas, 76,5% negras. Dos mortos pela polícia, 83,1% são negros[5]. Em passado triste e recente, Bolsonaro chegou a instalar um escritório em Jerusalém, território em litígio com os palestinos, depois de desistir de seu desejo inicial de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para lá[6]. Apesar do espetáculo midiático em que as vidas israelenses valem mais que as vidas palestinas, o movimento negro brasileiro tem imaginação política suficiente para separar o que é combate ao terrorismo do genocídio puro e simples. As nossas comunidades são invadidas, destruídas, militarizadas e submetidas a violência constante do Estado e dos discursos hegemônicos dos meios de comunicação que nos desumanizam cotidianamente (é a construção do “mau cidadão” como lembrava Clóvis Moura). Lá não chega a escola, a saúde, o emprego de qualidade, a cultura – só a mão armada do Estado e/ou dos grupos paramilitares e do crime organizado.

Portanto, tanto o movimento negro quanto a causa palestina buscam a justiça social, a igualdade de direitos, a libertação de povos historicamente marginalizados e compartilham a luta contra a opressão, a discriminação e a violência sistemática. Além disso, o movimento negro brasileiro reconhece a importância de solidarizar-se com outras lutas anticoloniais e antirracistas ao redor do mundo. A defesa da Palestina é vista como uma forma de resistência contra o colonialismo, o Apartheid e a ocupação ilegal impostos àquele povo por Israel. A solidariedade entre os movimentos reforça o sentido coletivo das lutas e a troca de experiências, estratégias e apoio mútuo fortalecem a resistência e a busca por justiça tanto no Brasil quanto na Palestina.

“Jesus desde menino/é palestino, é palestino…Ralé” A música “Ralé”, composta por Ninha, traz uma conexão entre a resistência do menino palestino e a luta contra o sionismo e o governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu em Israel. Essa conexão é feita ao lembrar que Jesus, uma figura central na fé cristã, também era palestino. Este menino palestino que resiste a insanidade do sionismo e também está presente na ruas de Salvador que foi palco da maior revolta de escravizados negros no Brasil, a Revolta dos Malês, em 1835, liderada por escravizados islamizados, no último dia do Ramadã. Quem tiver o mínimo de curiosidade em estudar e ouvir o que tem a dizer a militância antirracista brasileira irá se surpreender. A luta negra no Brasil tem várias raízes. E uma delas é Palestina!

[1] ALMA PRETA. “Movimento Negro no Brasil tem histórico de solidariedade com a Palestina”. https://www.terra.com.br/nos/movimento-negro-do-brasil-tem-historico-de-solidariedade-com-a-palestina,0474a091ccefed8adb3fd09cbf52c39cygp47jkj.html?utm_source=clipboard

[2] FSP, “Ditadura militar espionou movimento negro, reprimiu e infiltrou agentes”. https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/ditadura-militar-espionou-movimento-negro-reprimiu-e-infiltrou-agentes/#page2

[3] Afro-Latino-América. Versus. Disponível em: <<https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/afro-latino-america-versus/>>

[4]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/blindado-de-18-toneladas-saiba-como-e-o-caminhao-do-choque-da-policia-militar-de-sp-por-dentro.ghtml

[5] https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/07/5110389-83-dos-mortos-pela-policia-sao-negros-aponta-relatorio.html

[6] https://exame.com/brasil/israel-diz-que-brasil-abre-escritorio-diplomatico-em-jerusalem/

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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