Um dos maiores mitos da sociedade contemporânea é o da “felicidade individual”. Desculpe despontar, mas […]

Um dos maiores mitos da sociedade contemporânea é o da “felicidade individual”. Desculpe despontar, mas isto é humanamente impossível. Porque nós humanos somos seres sociais e o conjunto de nossas características que nos diferenciaram dos demais seres deste planeta – linguagem, costumes, valores morais e éticos – são aprendidos socialmente. Logo somos seres sociais.

É evidente que a felicidade só pode ser concebida como tal se ela é vivida em termos individuais. Porém algo distinto é afirmar que é possível ser feliz a partir de um mergulho no “eu” e da indiferença em relação ao mundo, as pessoas e suas urgências.

Todo mergulho no “eu” é também um encontro com o “nós”. Toda felicidade individual é também coletiva e desde que nos tornamos Homo Sapiens (ou já antes disso) o “eu” que se individualiza procura transformar a sociedade e encontrar uma forma de vida coletiva mais avançada. Hoje observamos religiões, filosofias, manuais de auto-ajuda prometendo algo que é impossível: a felicidade a partir de uma espécie de exílio no eu. Um indiferentismo em relação as dores e problemas do mundo numa espécie de quietismo transmutado em “filosofia da sociedade pós-moderna” que não consegue mais que produzir pessoas inseguras e amendrotadas (escondidas às vezes sob a capa da rigidez moral e do sabe-tudo). Nada é mais patológico que o conformismo. Nada contribui mais para a morbidez conservadora (como o feminicídio cometido em Campinas) que a ilusão de que podemos nos livrar do peso da vida em sociedade com algumas horas de meditação, uma palestra mágica e um método inovador de relações pessoais que vai te permitir ter sucesso e ganhar mais dinheiro (isso passo a passo). Não que eu seja contra estes métodos.

Eles podem produzir até algum tipo de conforto. Mas não por muito tempo. Afinal somos parte de um coletivo e de uma sociedade que adotou um padrão de vida baseado na destruição da natureza e na exploração do trabalho. Como é possível ser completamente feliz numa sociedade que tem como valores o dinheiro, o consumo, a destruição do meio ambiente e a exploração do trabalho humano?

Há quem acredite que basta se recolher dentro de si. Porém cada vez que olhamos para dentro de nossa alma, além do que nos singularizado como indivíduos, não podemos deixar de ver a face daquilo que construímos socialmente. Fora da dialética não há salvação: ou mudamos o nosso mundo interior e, no mesmo ato, lutamos para transformar a sociedade em que vivemos ou sucumbiremos diante da vida sentida como fardo e ausência de sentido. Como disse Drummond em seu belo poema: “Caminhemos de mãos dadas, não nos afastemos muito.”

Fábio Nogueira é Doutor em Sociologia pela USP e mestre em Sociologia e Direito (UFF). Professor da Universidade do Estado da Bahia. Autor dos livros “Porto” (Ed. Life, 2015), obra literária, e mais recentemente “Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência (Eduneb, 2016). É militante do movimento negro e fundador do Círculo Palmarino. Ex-candidato a prefeito de Salvador, este colunista é ainda presidente do PSOL Salvador.

 

Publicado originalmente em: http://mbqnews.com.br/o-mito-da-felicidade-individual-com-o-sociologo-fabio-nogueira/

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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