(...) era particularmente importante para Genildo estabelecer um percurso original e popular a esquerda revolucionária brasileira longe de uma tendência triunfalista, copiadora de modelos de programas revolucionários, que nada dizem sobre o que e o que somos como povo. (...)

Hoje se completam 20 anos da partida de Genildo Batista. No dia 11 de março de 2003, Genildo se despedia de nós depois de lutar, por meses, contra um câncer que abreviou sua existência e nos deixou a todos perplexos. Conhecera Genildo, alguns anos antes, provavelmente em 1998, quando entrei na zona de influência da Força Socialista – tendência interna do PT e acabei tendo a felicidade de conhecer a ação do deputado federal Ivan Valente. Este encontro foi particularmente definidor de minha trajetória em sentido amplo. Eu, que com muita dificuldade conseguira galgar a posição de estudante de ciências sociais da prestigiada Universidade de São Paulo (USP), trazia na bagagem as lembranças e vivências de uma militância petista nos limites da fronteira oeste do Brasil, o Pantanal. A adaptação em São Paulo foi muito difícil. Era necessário me reinventar. Quando na Universidade, frequentando o Núcleo de Consciência Negra, despertei para minha identidade racial, na Força Socialista, através de Genildo e outros camaradas, me reconheci como comunista.

Com este bilhete duplamente premiado, negro e comunista, fui me reconhecendo como parte de uma tradição política centenária que Genildo Batista, com justeza, foi ao mesmo tempo síntese e representação. Nascido nas terras sertanejas de Canudos, no semiárido baiano, de mãe solo, Genildo teve educação esmerada e se destacou como estudante no Ginásio Estadual Rubem Nogueira (GERN) em Serrinha. Anos depois, nos anos 70, partiu para Salvador onde cursou economia na Faculdade Católica e se enturmou como a luta estudantil e de resistência da ditadura militar. Participou da APML (Ação Popular Marxista Leninista, 1971) e da fundação, em 1985, do MCR – Movimento Comunista Revolucionário através da fusão de três organização de resistência à ditadura, a saber, a OCDP – Organização Comunista Democracia Proletária (1982), o MEP – Movimento de Emancipação do Proletariado (1970) e a Ala Vermelha – PCdoB (1966). Em 1989, o MCR – uma organização comunista que já tinha o PT como referência – torna-se Força Socialista (tendência interna) integrando a esquerda petista. Ainda em Salvador, casou-se com Iara e teve dois filhos, Dimitri e Dalila.

É nesse momento que Genildo muda-se com a família para São Paulo atuando como dirigente do PT paulista e assessor parlamentar do deputado Ivan Valente. Mas era, sobretudo, um intelectual comunista em tempo integral que tinha como principal característica a arte de transmutar a pluralidade característica dos agrupamentos humanos e, por extensão, das organizações revolucionárias em visões totais ou gerais do problema em questão dentro da perspectiva estratégica da revolução brasileira.

Como utopia concreta, a revolução brasileira era, para Genildo, algo a partir da qual se lia em conjunto os acontecimentos políticos sem cair, como ocorre na maior parte das organizações de esquerda atualmente, em um taticismo remoso como um cachorro sempre a correr atrás do próprio rabo. Era necessário pôr as ideias em movimento mas também traduzir o movimento das ideias e esta sua arte de trabalhador intelectual paciente teve nele um representante inigualável.

Como um estudante que iniciava sua trajetória no movimento negro reconhecer em Genildo um negro com autoridade intelectual e política em uma organização de esquerda majoritariamente branca (como o é ainda a esquerda brasileira), respeitado em suas posições, duro na defesa delas mas, ao mesmo tempo, flexível para mudar de opinião, livre de dogmatismo era para mim a senha de que é era absolutamente possível e necessário atar os dois caminhos do antirracismo e do comunismo em uma mesma direção.

Como intelectual coletivo, seus textos e escritos se confundem com a elaboração política da Força Socialista e da esquerda petista. Entender a centralidade da disputa político-ideológica, da importância da formação dos quadros políticos, do olhar crítico e da intervenção na conjuntura e na luta de classes, revisitar a história de luta do Brasil e da América Latina, não são características apenas de Genildo Batista mas de uma geração de socialistas e revolucionários que desde o processo de resistência à ditadura militar e na redemocratização procuravam caminhos para uma revolução brasileira que fosse além das declarações, notas e programas abstratos e sem povo. Era preciso traduzir em ideias a perspectiva da luta “dos de baixo”, reconhecer a complexidade da formação econômico-social brasileira e estabelecer horizontes de transformação radical da ordem que não abrisse mão da luta político-ideológica e do trabalho de base.

Mas era particularmente importante para Genildo Batista estabelecer um percurso original e popular a esquerda revolucionária brasileira longe de uma tendência triunfalista, copiadora de modelos de programas revolucionários, que nada dizem sobre o que somos como povo. Aliás, como ele mesmo gostava de lembrar, não há contradição entre os interesses do povo e dos comunistas. Ou seja, os comunistas não somos um séquito, uma seita, um grupo de eleitos que se pensa apesar do povo mas, ao contrário, vivemos nossa utopia concreta a partir do povo e com o povo. Se isso é correto como parte de uma tradição comunista revolucionária não há como deixar e identificar algo anterior a ela: a tradição de resistência negra e camponesa, tão bem representada por Canudos, na sertaneja Bahia que viu Genildo nascer.

São como rios que se entrecruzam em um intelectual coletivo que coerente com sua própria trajetória e escolhas percorreu o terreno acidentado da luta de classes com a força e a sabedoria das águas. Como não perceber em sua preocupação com a revolução brasileira, com as lutas dos cabanos no Pará, as rebeliões negras da Bahia, a dos povos indígenas e a luta dos operários paulista do ABC, a tradição de resistência quilombola, palmarina e camponesa que se impôs apesar das elites e de sua histórica violência anti-povo? Que se impôs apesar de uma esquerda eurocêntrica e copiadora de modelos que ainda desconhece a forma concreta como os povos que aqui foram explorados e oprimiram resistiram e permaneceram? É desta casa ancestral, da qual Genildo ainda permanece, que ele ousou fundir e criar como um feiticeiro na floresta, o ebó coletivo que pertence ao povo como o sol à natureza.

Percorremos vinte anos da luta de classes em nosso país sem o nosso Griot comunista.

Em África são os Griots que contam as histórias de um povo e preservam as tradições de uma geração a outra. Foram tempos duros e desafiadores a esquerda revolucionária. Muito se fez mas há ainda muito a ser feito. Como diz Lucas 19:40 “se eles se calarem, as pedras é que falarão”. Airton Krenak, com sua sabedoria ancestral, nos ensina como para seu povo os sonhos devem conduzir e orientar os humanos em suas vidas. Ouvir o que dizem as pedras, as estrelas, as águas e a natureza não é algo que possamos abrir mão quando lutamos e queremos construir uma sociedade sem classes de homens, mulheres e não binários livremente associados.

Se aconselhar com nossos sonhos é tecer a rede ancestral do qual todos fazemos parte.

Muito obrigado nosso Griot comunista Gegê Babá!

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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