A viagem de Boulos marca uma etapa importante na história do PSOL e da esquerda brasileira. Ele mesmo é expressão de uma esquerda não petista que não tem medo de dialogar com o petismo e entende a centralidade de, diante da força da extrema direita, construir alternativas concretas de poder que permitam traduzir democracia em direitos e ações inovadoras do poder público que tenham impacto no cotidiano das pessoas.
Há poucos dias, Guilherme Boulos, candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo esteve em viagem internacional conhecendo experiências governamentais em outras metrópoles e cidades como Paris, Nova York, Santiago do Chile e Xangai, na China. Ele fez o registro deste giro internacional em seu canal do Youtube[1]. Em particular, me chamou a atenção as alternativas encontradas pela cidade de Xangai, com 25 milhões de habitantes, para enfrentar o tema da mobilidade urbana que tem hoje quase 100% de sua frota composta por ônibus elétricos (reduzindo a poluição sonora e a emissão de gases poluentes na atmosfera).
A viagem de Boulos marca uma etapa importante na história do PSOL e da esquerda brasileira. Ele mesmo é expressão de uma esquerda não petista que não tem medo de dialogar com o petismo e entende a centralidade de, diante da força da extrema direita, construir alternativas concretas de poder que permitam traduzir democracia em direitos e ações inovadoras do poder público que tenham impacto no cotidiano das pessoas. Esta é uma estratégia de poder popular: governar para a maioria e reduzir o fosso que separa os representantes eleitos da pessoas em geral, ampliando os espaços de participação e democracia participativa com avanços reais e concretos nas condições de vida da população. Infelizmente, precisamos avançar mais nesta questão central para a esquerda: como construir hegemonia social e política para formas de governo populares nas adversas condições da luta de classes no século XXI?
Em primeiro lugar, não dialogo com aqueles que, no campo da esquerda, trabalham com a perspectiva insurrecional da Revolução Brasileira. Estes entendem os processos eleitorais apenas como meio de fazer propaganda ideológica, influenciar abstratamente as massas para, um dia, liderarem a grande insurreição popular que irá tirar do poder a burguesia. São aqueles que enxergam em toda greve e mobilização estudantil, o prenúncio da revolução. Apesar de muito diligentes e abnegados, suas organizações não crescem e carecem de influência por total deslocamento da realidade concreta. A estes, meu abraço!
Em segundo lugar, há os que reconhecendo a importância da luta institucional à luta de classes preferem o que chamo de processo ad infinitum de acúmulo de forças. Estes focam na oposição parlamentar institucional, contentam-se em dialogar apenas para seus nichos eleitorais e políticos, acabam por traduzir a própria ação política em termos de “pureza programática” e, em casos extremos, convertem-se em “régua moral do mundo”.
Esta perspectiva esteve presente nos primeiros anos do PT e também nos primórdios do PSOL. Não obstante a qualidade dos mandatos parlamentares e a importância destes em se apresentar como um setor autônomo e combativo para os trabalhadores, esta estratégia tem limites muito definidos por se cair no criticismo, ou seja, na incapacidade de traduzir o seu programa em uma forma real de governar e se contentar com a condenação a priori de todo poder real e concreto.
Estes são apresentam processos de transformações reais mas ideiais. Toda revolução, governo popular e movimento tem um “mas” ou “porque” por não se enquadrar à realidade imaginada em suas cabeças. A política se converte em puro proselitismo e não forma concreta e histórica de exercício do poder e arbitragem dos conflitos. Com o tempo, os trabalhadores acabam por se convencer de que o poder popular é uma impossibilidade histórica por ser algo que se persegue mas nunca se alcança. Não por outro motivo, estes grupos encontram expressão nas classes médias radicalizadas e na pequena burguesia com pouco ou nennhum conhecimento a respeito da realidade da população trabalhadora mais explorada e pobre. Este é um ponto que causa muita controvérsia entre as esquerdas. Se por um lado não é possível governar sem um programa não basta ter um programa. Não há um governar a priori mas um governar enquanto ato. Mas também governar enquanto ato não pode ser a mera reprodução da lógica institucional burguesa. O programa deve se tornar a expressão concreta da estratégia do poder popular.
Em terceiro lugar, há a tradição comunista[2]. Ela entende a centralidade da tomada do poder político pelos trabalhadores e seus representantes. Mas sabe que este não é um caminho construído fora das contradições da luta de classes. Portanto, é necessário conhecer o terreno em que concretamente a oposição entre burguesia e proletariado se estabeleceu em termos históricos e estruturais. No caso brasileiro, nossa formação econômico-social constituiu um país de economia dependente e periférica a partir da intersecção entre colonialismo, escravismo e patriarcado. Temos, portanto, uma sociedade profundamente desigual e que ocupa uma posição dependente no que diz respeito a divisão internacional do trabalho. O nosso capitalismo não fez a reforma agrária, não universalizou direitos, não foi democrático em boa parte de sua história, teve um conturbado processo de industrialização que se valeu da feminização e racialização da força de trabalho para a super-explorar e precarizar.
Esta tendência se aprofundou a partir de 1994 com a implementação do Plano Real, gerando uma forte desindustrialização da economia nacional, uma dependência do capital financeiro nacional e internacional e uma reprimarização de nossa economia. Porém, este cenário não inverteu a lógica de urbanização, com as cidades concentrando hoje 84,3% dos brasileiros, boa parte deles vivendo em metrópoles como São Paulo. Logo, a população destas cidades tem hoje menos opções de empregos com carteira assinada e direitos como existiram nos anos 1980. Isto contudo não impede o potencial político de organização enquanto classe tendo, pelo menos na última década, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) como uma de suas principais expressões. E, ao mesmo tempo, abriu espaço para outras expressões religiosas como os grupos evangélicos que, segundo as projeções do IBGE, a partir de 2030, se tornarão isoladamente o maior grupo religioso, suplantando os católicos. Se a luta de classes não pode ser pensada sem articulação entre a realidade material objetiva e a subjetividade da classe, esta realidade deve constar como elemento para construir um projeto de poder popular no Brasil do século XXI.
A grande questão é: como governar de uma perspectiva de classe, de caráter popular, que acumule para formas de poder real e concreto da maioria, sem reproduzir a hegemonia de valores burguesa e neoliberal? No fundo este é o simbolismo da visita internacional de Boulos. A esquerda brasileira não pode estar divorciada do mundo. Tem vocação de poder até porque governa atualmente o país com Lula. Mas isso não significa deixar de se questionar permanentemente qual o sentido deste governar. Por mais que os liberais reproduzam esta ideia, governante não é apenas gestor (apesar que exercer bem a gestão também tem que ser um dos objetivos da esquerda no poder). Até porque se assim o fosse, não haveria a necessidade de programas e partidos políticos bastaria selecionar o currículo do melhor gestor. Conhecer outras formas de governar, apresentar soluções e alternativas concretas a vida da população, em especial a mais pobre, é parte do processo de disputa de hegemonia social e política que legitima a esquerda no poder. Mas há quem prefira pregar para convertidos. É mais confortável.
Evidentemente, todos sabemos as limitações da institucionalidade burguesa principalmente em um ciclo de regressão neoliberal da economia brasileira. Diante disso não podemos ficar presos a oposição entre primeiro ter o programa socialista e anti-neoliberal para uma vez eleitos o implementar (fazendo tábula rasa do estado e da luta de classes) ou aderir a lógica neoliberal e se contentar em mitigar seus efeitos. É preciso enfrentar o neoliberalismo desde dentro das instituições mas também de fora (através dos movimentos sociais) ampliando os espaços de decisão e participação e construir diques a sanha neoliberal. Mas isso deve dialogar com as condições objetivas e subjetivas da luta de classes, as bases estruturais e sua expressão em termos conjunturais na realidade política brasileira.
Não se trata apenas de desejar fazer diferente mas continuar desejando e continuar tentando fazer diferente mesmo que as condições não sejam favoráveis. Isso não se realiza sem formas de governar concretas e objetivas que passam por tentativas, erros, correções de rumos e vitórias. Não tenho a pretensão de encerrar este debate. Ao contrário, ele precisa ser aprofundado. Governar pela esquerda é possível nas condições do capitalismo dependente brasileiro do século XXI. Mas como? Qual programa mais adequado pra dialogar com as condições objetivas e subjetivas da luta de classes no Brasil hoje? Como fica a questão do sujeito histórico? A classe trabalhadora tem um peso decisivo ou não? Como retomar a perspectiva de totalidade de um programa politicamente orientado para a transformação e construção de um projeto popular? Não são questões simples e fáceis de responder. Mas o presente e o futuro da esquerda brasileira e mundial depende das respostas que dermos a elas.
[1] “O que vi em outras cidades do mundo.” Café com Boulos. https://www.youtube.com/watch?v=Jb3jMB5McMk
[2] Não irei aqui me aprofundar a respeito do que entendo por tradição comunista. Mas, em linhas gerais, a defino como o esforço de traduzir em termos da luta social e política concreta o movimento do real, ou seja, da luta de classes. Todo comunista parte da formação econômico-social para entender concretamente como as classes se constituíram e desenvolveram, no que é o aprendizado histórico concreto da luta e suas formas objetivas de poder e autogoverno dos trabalhadores. Um exemplo desta tradição comunista é Clóvis Moura que, ao entender a formação do capitalismo brasileiro na sua relação do escravismo, destacou a resistência quilombola e as insurreições negras como parte do processo de luta de classes no Brasil.
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