A posição de potência imperialista inconteste dos Estados Unidos em nosso continente, seja do ponto de vista militar ou ideológico, contribuiu para criar uma falsa percepção sobre os avanços da comunidade afro-americana. É como se o American Way of Life tivesse nos tornado magicamente uma comunidade de Oprahs, Beyoncés, Obamas e Will Smiths. Nada mais longe da realidade, independente do inegável talento e valor destas celebridades negras.

A atualidade da luta anti-imperialista é algo que nós, negros e negras do Sul Global, precisamos sensibilizar e disputar a consciência de nossos irmãos e irmãs afro-americanos. Lélia González, ao propor a categoria político-cultural, amefricanos, o fez por perceber como ao assumirem a identidade de “afro-americanos” isso limitava a percepção de nossos irmãos e irmãs do Norte em relação a como concretamente os processos de diasporização ocorreram no Caribe e ao Sul do continente. A posição de potência imperialista inconteste dos Estados Unidos em nosso continente, seja do ponto de vista militar ou ideológico, contribuiu para criar uma falsa percepção sobre os avanços da comunidade afro-americana. É como se o American Way of Life tivesse nos tornado magicamente uma comunidade de Oprahs, Beyoncés, Obamas e Will Smiths. Nada mais longe da realidade, independente do inegável talento e valor destas celebridades negras.

Em primeiro lugar, a abolição aconteceu nos Estados Unidos em um contexto de Guerra Civil (1861-1865), que opôs os estados do norte (pró-abolição) aos do sul (escravista). Com a vitória do norte, houve o período da Reconstrução Americana (1865-1877), durante o qual, além da liberdade, alguns direitos foram garantidos à população negra. No entanto, logo após, a partir de 1880, houve uma regressão desses avanços, com a aprovação de leis de segregação e gradualmente a constituição do que se tornaria o sistema Jim Crow. Mesmo nos Estados Unidos, um país central no capitalismo e de caráter imperialista, o racismo não foi superado e a comunidade negra não foi plenamente integrada, enfrentando até hoje os piores indicadores sociais. Do meu ponto de vista, o sucesso do seriado Todo Mundo Odeia o Chris no Brasil (além do excelente trabalho dos dubladores) se deve ao fato de que retrata a realidade média dos afro-americanos, que não é muito diferente do que vemos nas cidades brasileiras (territórios negros, segregados e empobrecidos). Por isso, o bordão do personagem Julius, interpretado pelo carismático ator Terry Crews, de “se não pagar o desconto é maior”, faz tanto sentido, pois aqui, como lá, a regra de nosso povo é a privação e não o contrário. Fazer análise do racismo sem considerar sua relação com as condições materiais de vida é uma retórica vazia, pois não aponta para um processo mais profundo de transformação que, de fato, poderá levar à superação do racismo. A expectativa de um homem afro-americano com baixa escolaridade é de 66 anos, enquanto que a de um homem branco com ensino superior é de 80 anos. A expectativa de vida da população norte-americana (79,2 anos) é menor que a de Cuba (79,6 anos). A taxa de mortalidade infantil entre os afro-americanos é a mesma de países como Togo e a ilha de Granada, muito abaixo dos índices da população branca[1]. Apesar de representar 13% da população, os afro-americanos são 40% da população carcerária. Enquanto 73% dos brancos estadunidenses tem casa própria, este índice chega a 43,2% entre os negros, situação que piorou a partir da crise imobiliária de 2008[2]. Em termos comparativos, um homem negro recebia em média 80% do salário de um homem branco em 1970. Em 2016, este índice caiu para 70% da renda média de um homem branco, algo que é ainda mais significativo quando se trata de mulheres negras. A taxa de desemprego entre os afro-americanos é maior que média nacional, mais de 50 anos depois da Lei dos Direitos Civis ter sido aprovada[3].

Em segundo lugar, existe o aspecto demográfico. Nos Estados Unidos, nós representamos 13,8% da população o que totaliza 30 milhões de afro-americanos, distribuídos desigualmente pelo território, sendo que deste 88% vivem nas metrópoles norte-americanas. No Censo dos Estados Unidos, ao lado dos afro-americanos, existem outros grupos étnicos e raciais como brancos, indígenas e latinos. Já, o Censo brasileiro, aponta que ao somarmos pretos (10,2%) e pardos (45,3%), os negros chegam a 55,5% da população total. Se somarmos o grupo indígena, 0,8%, os não-brancos somam 56,3% contra 43,5% dos brancos. Logo, não somos aqui uma minoria nacional, ao contrário, a tendência é de crescimento demográfico da população parda e preta o que obriga às elites sociais e políticas, domesticadas por décadas de neoliberalismo, a reinventar outras formas de integração de negros e negras para além do mito da democracia racial.  É desta forma que, quando da retomada do protesto negro brasileiro, no pós-ditadura, no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU) a imaginação política do movimento negro brasileiro referenciava-se, sobretudo, nas lutas de libertação nacional em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique e contra o Apartheid na África do Sul. Para nós, trata-se de uma maioria oprimida por uma minoria (colonizadores e neocolonizadores); e não, como nos Estados Unidos, de uma minoria oprimida por uma maioria. Aqui, a questão é que não nos veríamos como maioria – pelos efeitos da ideologia da democracia racial – e desta maneira a importância em se falar de “consciência negra” como algo à ser construído. Por isso, nos Estados Unidos, mas também no mundo anglófano, o proselitismo protestante exerceu um papel crucial, através das igrejas negras, na recriação da comunidade afro-americana como nacionalidade oprimida dentro de um território hostil em que os brancos são maioria. Logo ser negro ou não ser negro não era algo que estava em questão, pela própria história de como se deu a colonização e escravização nos EUA. Enquanto em países como Brasil e Cuba ser negro e ser nacional foram tomados por um grande período como sinônimos; entre os afro-americanos o nacionalismo negro reforçou um sentido próprio de nacionalidade. Temos que ter em mente que a nossa experiência negra brasileira é parte da experiência negra no Sul Global e como principal país da diáspora africana nas Américas temos um papel determinante para o avanço de nosso consciência histórica como população explorada e oprimida pelos processos de expropriação racializados a serviço do capital.

Logo é preciso reconhecer o que há de comum e o que diferencia as estratégias de resistência negras no Brasil e nos Estados Unidos tendo uma ênfase maior em entender como elas se deram em nosso país até por ser um processo ainda em construção e, em termos históricos, de reconhecimento público relativamente recente. Mas é preciso reconhecer que o combate ao imperialismo – como o fez o Partido dos Panteras Negras – no coração do gigante do Norte, é algo que nós, ao Sul, como negros e negras, precisamos fortalecer junto com nossos irmãos e irmãs afro-americanos. Existe uma tradição radical negra nos Estados Unidos com a qual temos muito o que aprender. As águas da diásporas se entrecruzam nos mares das lutas e dos processos de emancipação de nosso povo. Se isso não for feito não teremos condições de avançar de fato para processos que interditem a expropriação racializada de nossos trabalho e territórios, mantendo-se nos limites de um sistema que nos oprime e desumaniza. É preciso voltar a denunciar o aparato militar que os Estados Unidos mobilizam para manter sob controle processos potencialmente revolucionários em África, Ásia, Américas e Caribe. É preciso combater o financiamento deste mega-aparato e complexo militar estadunidense que se articulam às políticas de segurança contra os “inimigos internos”, impostas a outros contextos nacionais, como é a política de “guerra às drogas” que em nenhum lugar deu certo, a começar pelos EUA. São os Estados Unidos e os seus aliados, incluindo Israel, que contribuem a progressiva fascistização do mundo, financiando com recursos, armas e treinamento militar grupos e organizações voltados ao “combate ao terrorismo” e ao “crime organizado”. Enquanto o imperialismo estadunidense continuar a pleno vapor a promover guerras e a desestabilização das democracias populares ao redor do mundo, não estamos seguros e nem a humanidade estará a salvo.


[1] “6 indicadores em que os EUA estão no mesmo nível dos países subdesenvolvidos.” https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42076223

[2] Juarez Xavier. “Desigualdades sociais e discursos xenófobos nos EUA” https://www.estadao.com.br/emais/tudo-em-debate/desigualdade-social-e-discursos-xenofobos-nos-eua/

[3] FSP, “Deficit salarial de negros sobre por razões inexplicáveis nos EUA.” https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2017/09/06/deficit-salarial-de-negros-sobe-por-razoes-inexplicaveis-nos-eua.htm

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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