Em recente entrevista, Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas (CUFA), é perguntado sobre […]

Em recente entrevista, Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas (CUFA), é perguntado sobre o papel do empreendedorismo nas comunidades faveladas do Brasil[1]. A resposta de Zezé é bastante pertinente para se refletir sobre a centralidade da agenda econômica para o movimento negro e como isso acabou secundarizado por um debate comportamental do racismo à brasileira, muito presente nas plataformas digitais de marketing e propaganda das Big Tech capitalistas conhecidas por redes sociais.

Preto Zezé dá uma enorme contribuição ao identificar o “calcanhar de Aquiles” da comunidade negra brasileira, a saber, a sua exclusão do centro de produção econômica e sua marginalização ao trabalho precário e mal remunerado. Este é um tema que podemos remontar, por exemplo, a Manuel Querino (1851-1923) quando aponta a centralidade do negro como colonizador do Brasil o que significa, do seu ponto de vista, que a vida material – um sentido amplo que emprego para pensar a atividade econômica – deveu-se centralmente ao trabalhador negro e negra. Esta perspectiva de Querino contraria a visão predominantemente eurocêntrica do trabalho forjada ao logo do século XX e que Clóvis Moura tão bem denunciou a partir de Rebeliões da Senzala (1959). Não apenas a história do trabalho não se inicia com o pós-Abolição (1888) como as formas de resistência ao trabalho escravizado e a formação do quilombos são expressões de uma luta de classes que marcou por séculos a história política e do trabalho no Brasil. Basta ver a coerência deste argumento ao ler Os ganhadores (2019)[2], de João José Reis, que narra a história da primeira greve geral negra do país ocorrida em 1857 na cidade de Salvador tendo como protagonistas os escravizados de ganho.

A agenda econômica está presente para a geração negra do pós-redemocratização que tem como marco a fundação do Movimento Negro Unificado (1978). Autores como Florestan Fernandes e Clóvis Moura já tratavam da questão desde os anos 1950 e 60 mas este debate está presente no pensamento de intelectuais negros radicais como Hamilton Cardoso, Lélia Gonzalez e o próprio Abdias do Nascimento (basta um olhar mais detido de como o seu conceito de Quilombismo dialoga diretamente com a conjugação entre autonomia política e econômica presente no projeto de socialismo africano – Ujimaa – de Julius Neyerere). Mas é em Lélia que temos os insights mais ricos neste sentido seja em Lugar de negro (1982)[3], escrito em parceria com Carlos Hasenbalg, como no ensaio “Cultura, etnicididade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher” (1979) em que dialoga com José Num, um teórico marxista dependentista e Loius Althusser[4]. Lélia é a autora que lança as bases do que definimos contemporaneamente por racismo estrutural e que tem em Sílvio Almeida (2018)[5] e Dennis de Oliveira (2021)[6] como seus principais continuadores.

A experiência do racismo em nosso país está fundamentalmente ligada ao trabalho, ou em termos mais precisos, da construção/imposição do trabalho capitalista que fez com que tivéssemos uma força de trabalho profundamente racializada. Em termos da experiência negra do trabalho no Brasil a realidade foi a da super-exploração e precarização, fazendo com que a população negra ocupasse as posições mais desvantajosas quanto a formalização de direitos e garantias sociais[7]. É no Brasil por excelência que se desenha com fortes contornos o que Cedric Robinson chamará de capitalismo racial[8].

É justamente o caráter racial do capitalismo dependente brasileiro o que torna a estratégia do empreendedorismo negro defendida por Preto Zezé um projeto com muita dificuldade de ser implementado na prática. Por exemplo, um estudo como de E. Franklin Frazier, “Black Bourgeoisie” [Burguesia Negra] de 1957, aplicado a experiência afro-americana seria impossível de se realizar no Brasil no período em que ele escreveu e cabe perguntar se seria possível isso nos dias atuais. Se a permanência de negros e negras na classe média já é algo precário, quem dirá sua assunção a um extrato burguês superior. O mesmo se aplica quando se pensa a condição predominantemente precária da experiência do trabalho negro, motivo pelo qual a ocupação das periferias, favelas, baixadas e alagados se tornou a única alternativa possível pelo alto custos dos aluguéis (o que mostra, por exemplo, o forte potencial antirracista do movimento de moradia).

Para ser justo, o que Preto Zezé propõe não é a formação de uma burguesia negra a partir do empreendedorismo periférico mas a melhoria das condições econômicas da comunidade favelada. Este é um desejo legítimo. Talvez o que precisemos dialogar mais é sobre como isso pode se efetivar na prática. Será pela livre iniciativa e leis do mercado que historicamente sempre privilegiaram o estrato superior branco da sociedade brasileira? Creio que não. Uma perspectiva alternativa é pensar o Estado como elemento central de um modelo de desenvolvimento inclusivo da comunidade negra e, para isso, é fundamental que este seja radicalmente democratizado. A luta por investimento estatal em nossas comunidades sempre foi uma característica do movimento negro brasileiro e daí a forte presença negra em organizações trabalhistas, socialistas e comunistas e a nossa inserção nos movimentos de base comunitária e periféricos (em especial das mulheres negras)[9]. Há aqui uma invisibilidade em mão dupla: de um lado, apagam a história negra da história do trabalho no Brasil quando, na verdade, a primeira é fundante da segunda; de outro, não se reconhece o papel das lideranças negras nos movimentos sociais e sindicais brasileiros como se estivéssemos “vocacionados” para futebol e carnaval e não para a luta e a organização política, algo que só existe na cabeça de brancos racistas.

Desta maneira, voltamos ao tema de como o racismo se articula a nossa estrutura social em termos de uma sociedade de classes racializada. Existe uma questão de fundo que pode ser resumida em perguntar a que projeto político o empreendedorismo serve. Se for o de tentar aplicar em nossas comunidades faveladas e periféricas um capitalismo multicultural como se tentou, por exemplo, nos Estados Unidos, a experiência histórica mostra o quanto este foi e é limitado e não conseguiu enfrentar, por exemplo, a questão da super-exploração/precarização do trabalho, da violência e do encarceramento em massa. Acerta o Ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, quando diz que o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das principais políticas antirracistas do Brasil[10]. Nossos irmãos afro-americanos que foram as ruas protestar contra a execução de George Floyd, em 2020, também apontaram a necessidade de mais emprego e direitos trabalhistas e um sistema de saúde público[11]. Afinal, o racismo é estrutural, tanto aqui como nos Estados Unidos, apesar terem histórias diferentes eles servem ao mesmo senhor capitalista.

Se por outro lado, a proposta de Preto Zezé é algo novo, que dialoga com a realidade brasileira, isso passa pela construção de um novo setor da economia que não se constituirá sem forte investimento estatal, o que deve fazer-nos pensar sobre o papel dos bancos públicos como Caixa Econômica, Banco do Brasil e o BNDES. A questão aqui talvez é recuperar propostas como economia solidária, comércio justo e de uma economia popular que não tem a adesão do setor privado, em especial do capital financeiro, que está mais interessado em promover o empreendedorismo como resposta à crise do capitalismo (com a precariedade e o desemprego se tornando dados permanentes para a população negra). O fato é que isso exige um posicionamento que contrarie a atual agenda econômica de “austeridade neoliberal” que coloca a ampliação do investimento público como a algo a ser evitado a qualquer custo (apenas quando se trata da população mais pobre e negra, não para salvar banqueiros e capitalistas).

Outro mérito de Preto Zezé, em meu ponto de vista, é que ele não está dialogando exclusivamente com a realidade da classe média negra e de brancos liberais em que a leitura moral e comportamental do racismo – materializada na bandeira da representatividade – parece suficiente como núcleo de um protesto e radicalismo negro ao satisfazer centralmente seus interesses mais imediatos. A precariedade do trabalhador negro é uma realidade; a questão é que o projeto de promover uma autonomia política negra como parte de sua autonomia econômica que passe centralmente pela articulação com setores privados que sempre se valeram de uma força de trabalho racializada não teve até hoje precedente histórico de sucesso pela lógica intrínseca do capitalismo racial. Vale lembrar que estes setores privados foram os que promoveram e aprovaram a nefasta proposta do Novo Ensino Médio que deve ser urgentemente revogada sob pena de penalizar nossa juventude negra e periférica que tem praticamente como único meio de formação escolar o ensino público. De qualquer forma, o ponto de partida apresentado por Preto Zezé é a possibilidade de se pensar a articulação entre esferas econômicas (pública, estatal, privada e solidária/popular) através de uma profunda democratização do estado e o fortalecimento dos mecanismos de planejamento estatal (como ocorre na China). Com certeza neste ponto divergimos mas divergir nunca foi o problema. O problema maior é deixar de estabelecer percursos possíveis e disputar projetos. Logo há muito o que se dialogar e disputar.

[1] “Preto Zezé e o empreendedorismo da favela, consciência de classe e identidade racial” | Reconversa #7. Entrevistado por Reinaldo Azevedo e Walfrido Warde. https://www.youtube.com/watch?v=Kt6FjIaLsBk

[2] Reis, João José. Ganhadores – A greve negra de 1857. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[3] Gonzálvez, Lélia; Hasenbalg, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2022 [1982]

[4] Gonzálvez, Lélia. “Cultura, etnicididade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher” In.: Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020, p.25-44.

[5] Almeida, Silvio. Racismo Estrutural. Coleção Feminismos Plurais, São Paulo: Pólen, 2019.

[6] Oliveira, Dennis de. Racismo Estrutural, uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Editora Dandara, 2021.

[7] Souza, Cristiane Luiza Sabino. Racismo e luta de classes na América Latina. As veias abertas do capitalismo dependente. São Paulo/Porto Alegre: Ed. Hucitec, 2020.

[8] Robinson, Cedric. Marxismo negro. A criação da tradição radical negra. São Paulo: Editora Perspectiva, 2023.

[9] Barbosa, Eliete Edwiges. Negras lideranças: mulheres ativistas da periferia de São Paulo. Editora Dandara, 2019.

[10] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2022/07/29/silvio-almeida-explica-por-que-o-desmonte-do-sus-e-sintoma-do-racismo.htm

[11] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52893434

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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