A recente entrevista de Muniz Sodré, um dos maiores intelectuais negros do Brasil, a Folha de São Paulo, em que divulga o seu novo livro "O fascismo da cor", e faz críticas ao conceito de racismo estrutural que tem como seus principais divulgadores Sílvio Almeida e Dennis Oliveira, acendeu paixões entre intelectuais, ativistas e comentaristas do meio negro.
Considero muito feliz o nome dado ao jornal de divulgação das ideiais de Marcus Garvey, líder pan-africanista jamaicano, “Mundo Negro” (Negro World). Isso porque o título de sua publicação articula de um lado a dimensão global das lutas dos negros e negras que se erguiam da escravidão no Caribe e nas Américas e enfrentavam o neocolonialismo em África, depois de séculos de tráficos de escravizados; e de outro, refere-se ao complexo cultural negro – que Paul Gilroy chamou de Atlântico Negro – como contracultura da modernidade[1].
A experiência negra se deu, fundamentalmente, a partir da articulação entre cultura e política pensada em sentido amplo. Africanismo, crioulismo e ilustração a la europeia conviveram lado a lado na imaginação política negra, ora se pensando como uma subcultura negra dentro da cultura nacional mais ampla (podemos pensar na experiência dos afro-americanos, por exemplo), ora como parte e fundamento da própria nacionalidade (que é o caso do Brasil e Cuba). Gramsci, em seu Intelectuais e a organização da cultura, fez referência a ideia de criar “Piemonte africano”, ou seja, o movimento de retorno a África preconizado por Garvey, da perspectiva dos intelectuais negros. Refletindo o espírito da época, Gramsci exalta o papel dos intelectuais negros norte-americanos (socializados intelectualmente dentro dos cânones da cultura Ocidental) à formação de novas nacionalidades africanas (que sofria as pressões do neocolonialismo, a dispersão em diferentes povos e inexistência da uma língua única que não a dos colonizadores). Gramsci se aproxima e não disfarça a sua simpatia pelo projeto garveirista porque o que fundamentalmente preconizam nas primeiras décadas do século XX é o papel dos intelectuais à formação de uma nova nacionalidade negra[2].
A experiência histórica contudo pareceu contrariar as expectativas de que a ilustração a la europeia pudesse atender as expectativas da população negra em superar o racismo e as marcas da escravidão. O exemplo do nacionalismo negro cubano, do começo do século XX, é emblemático. Instituições criadas por uma intelectualidade negra incipiente no início do século XX, deram origem a um partido negro – o Partido dos Independentes de Cor – que procurava ser uma alternativa partidária aos negros cubanos. Em 1912, o estado cubano desencadeou uma guerra contra os membros do partido que assinou e aprisionou milhares de seus integrantes. Ivonet e Esternoz, intelectuais e líderes negros do partido, tiveram suas cabeças cortadas e expostas publicamente[3]. O integracionismo do reverendo Martin Luther King dos EUA não o deixou a salvo da ira e da violência dos racistas e intolerantes. Estes acontecimentos fizeram com que se se repensasse as estratégias de luta contra o racismo e também se ampliasse o significado da cultura negra e nisso o papel do próprio intelectual negro.
Desta maneira, é muito satisfatório perceber como, ainda nos dias atuais, o intelectual negro cumpre a sua função de crítico, polemista e elemento fomentador de reflexões que levem a novos avanços e possibilidade a compreensão/ação diante da realidade do racismo. Jean Tible, em seu recente Política Selvagem[4], preconiza a ideia de “ciência-luta”, algo que Clóvis Moura, ao tecer uma dura crítica a sociologia acadêmica, apresentou como o projeto de uma “sociologia democrática”[5]. O intelectual negro não é produto apenas da intelecção acadêmica mas, sobretudo, um intelectual público que, na definição de Edward Said, diz a “verdade ao poder”[6]. A recente entrevista de Muniz Sodré, um dos maiores intelectuais negros do Brasil, a Folha de São Paulo[7], em que divulga o seu novo livro O fascismo da cor, e faz críticas ao conceito de racismo estrutural que tem como seus principais divulgadores Sílvio Almeida e Dennis Oliveira, acendeu paixões entre intelectuais, ativistas e comentaristas do meio negro. Infelizmente, a ditadura da forma-algorítimo a respeito dos debates na esfera pública deu origem a argumentos rasos que opuseram Sodré e Almeida em uma arena imaginária. Por outro lado, mostrou como a produção de um saber e conhecimento sistematizado, por longos anos, a partir da experiência como parte e a partir da comunidade negra, são vitais a manutenção e atualização de uma tradição intelectual negra profícua e potente como a brasileira. A nossa tradição intelectual negra é ampla e vasta mas pouco conhecida e valorizada. Inegável o peso do racismo mas, sobretudo, a falta de cuidado que às vezes, nós mesmos, temos em relação aos que vieram antes de nós. Para citar um exemplo, em 14 de fevereiro deste ano, se completou o centenário do falecimento de Manuel Querino (1851-1923), intelectual negro e baiano que, se fossemos colocar na régua de nosso tempo, é um dos pontos iniciais da tradição intelectual que representa hoje as ideias de Muniz Sodré. Foi uma data importante que, com o perdão do trocadilho, só não passou completamente em branco em função de uma missa em sua homenagem realizada pela Irmandade da Nossa Senhora do Rosários dos Pretos em Salvador[8].
A historiadora Paulina Alberto escreveu um trabalho muito bem documentado, “Os termos da inclusão”[9], em que apresenta como, ao longo do século XX, o debate entre os intelectuais negros foi se transformando e ramificando em diferentes direções a partir do Rio, São Paulo e Bahia. Por outro lado, podemos aproximar o pensamento de Sílvio Almeida de intelectuais como Clóvis Moura, Jacob Gorender, Solano Trindade, Laudelina de Campos Melo e Lélia González ou ainda, dos intelectuais marxistas da Revista Seiva, vinculada ao PCB baiano, nos anos 40[10], que se propuseram a estudar a relação entre capitalismo, racismo e estrutura social.
Não há caminho correto para a nossa consciência negra. Eles são sempre imperfeitos no sentido de que se referenciam em reflexões que se acumulam e traduzem em ações no tempo e no espaço e constituem a experiência de saberes/ação de longa duração a que chamamos de resistência. A ditadura da forma-algoritmo não pode tornar esta longa tradição intelectual e política uma mera caricatura pois ela foi construída com muito sangue, suor, dissabores e conquistas. Este é, por assim dizer, um debate extremamente feliz e que chega em boa hora.
[1] Girloy, Paul. Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2021.
[2] Gramsci, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1982, p.20
[3] María de los Ángeles Meriño Fuentes. Una vuelta necesaria a mayo de 1912, La Habana, Editorial de Ciencias Sociales (colección Pinos Nuevos), 2007.
[4] Tible, Jean. Política Selvagem. São Paulo: N1 Editora, 2022.
[5] Moura, Clóvis. “Devoremos a esfinge antes que ela nos decifre (Papel da Sociologia em uma Sociedade Democrática)” Separata da Revista Princípios, n. 40, São Paulo, 1987.
[6] Said, Edward. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[7] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/03/aceito-a-expressao-mas-racismo-nao-e-estrutural-no-brasil-diz-muniz-sodre.shtml
[8] https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/missa-no-rosario-dos-pretos-lembra-centenario-da-morte-de-manuel-querino/
[9] Alberto, Paulina L. Termos da inclusão: Intelectuais negros brasileiros do século XX. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
[10] FERREIRA, Daniela de Jesus. Tempos de lutas e esperanças: a materialização da revista Seiva (1938-1943). 2012. 186 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em História)- Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2012. Disponível em: << http://tede2.uefs.br:8080/handle/tede/946>>
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