"(...) ante ao atual “desmanche” dos mínimos sociais que o capitalismo contemporâneo celebra e vende como estilo de vida nas telas de nossos smartphones, tablets e LCD´s, nós socialistas temos o que a oferecer e apresentar de alternativo?"

Confesso aos leitores que sou um fã de séries que se passam em cenários pós-apocalípticos. Existem inúmeros exemplos nas plataformas de streaming, em especial, da que é ainda maior no Brasil, a Netflix. Round Six, Alice in Borderland, The Walking Dead, entre outros, exploram as condições e possibilidades de indivíduos que são arrastados, contra suas vontades, a enfrentar situações limites – espécie de reality shows roteirizados e, convenhamos, bem mais criativos e interessantes. Mas esta atração por séries deste gênero me fez refletir sobre sua popularidade e os sentidos e valores que são encenados em tela. Afinal, será que diante de um cenário pós-apocalíptico entraríamos em uma espécie de idade das trevas, mergulhados em nossos instintos e ultrapassando todos os limites éticos para manter a qualquer custo a própria sobrevivência? Porque estas séries se tornaram tão populares e a que fenômeno cultural elas respondem? Sem querer entrar nos detalhes de cada trama é interessante perceber como nelas o amigo e aliado de hoje é o zumbi a ser abatido ou o adversário de amanhã em um permanente jogo onde só há espaço para um único vitorioso sobrevivente. Curioso constatar como para a maior parte desta produção audiovisual a mera sobrevivência já é em si uma vitória.

É como se assistíssemos projetado em tela o que o sociólogo Richard Sennet chamou apropriadamente de “cultura do novo capitalismo”[1]: um mundo em que não nos resta senão um estilo de vida sem aderência, em que se lança de mão de todos os artifícios antiéticos para sobreviver apenas como ser que respira, come, consome e defeca. Só que o custo emocional deste estilo de vida é muito alto, algo retratado muito bem pela série Euphoria, de 2019, do Canal HBO (que teve sua segunda temporada em 2022). Isso porque o novo capitalismo ao definir este como seu estilo de vida definitivo está indo para além dos muros do humano. É nossa característica como humanidade viver coletivamente, partilhar sentidos, frustrações, expectativas e sonhos. As redes sociais ao mesmo tempo que interconectaram e permitiram a fluidez da informação e uma popularização da produção do conteúdo, nos aprisionou nas bolhas do algoritmo e tem contribuído para situações de degradação social e individual com o surgimento de fakenews, de grupos intolerantes, de extrema direita e conspiracionistas e também como espaço de uma sociabilidade tóxica para jovens que vem se isolando e perdendo o sentimento de pertencimento coletivo em meio a existências cada vez mais individualizadas e vazias. Seja do ponto de vista da não satisfação das necessidades materiais (fome, pobreza e miséria) como dos desejos e sonhos dos indivíduos, o capitalismo como parte do que se chamou de Civilização é insustentável – ou como disse Aime Cesaire, indefensável[2].

Esta é uma realidade que não apenas nós socialistas identificamos. As altas esferas dos oligopólios empresariais capitalistas vem investindo no que entendem como um ambiente corporativo mais aberto às “reinvenções” do indivíduo e com políticas de inclusão e de diversidade (que nada mais representam que normalizar o risco característico do capital financeiro e colonizar as pautas políticas e de inclusão como novos nichos de mercado). O resultado final é mais do mesmo: não há emancipação política possível que seja apenas subjetiva. A mudança da vida social não é algo que se estabeleça pela mera performance de um desejo e de um estilo de vida mas a partir de relações reais, entre indivíduos e coletividades, que são por sua natureza conflituosas e contraditórias. Todo sonho demanda uma elaboração estruturada, coletiva e permanente.

Ante ao atual “desmanche” dos mínimos sociais que o capitalismo contemporâneo celebra e vende como estilo de vida nas telas de nossos smartphones, tablets e LCD´s, nós socialistas temos o que a oferecer e apresentar de alternativo?

Em primeiro lugar, nós dizemos “sim” a vida e a humanidade. Acreditamos que a vida humana é viável e que superamos situações muito mais adversas, ao longo, de milênios para nos afirmarmos como espécie no planeta Terra. Não estamos vocacionados necessariamente a agir contra a nossa natureza de seres coletivos e gregários que somos. Por isso, apesar do individualismo de queimão de “ponta de estoque” – só consigo pensar nas promoções do “aniversário Guanabara” – não podemos normalizar esta condição. Ela é passageira e não diz respeito ao que podemos ser. É algo transitório. Nelson Mandela dizia, “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender.” A sociedade não é. As pessoas não são. As sociedades e as pessoas estão e foram se construindo desta maneira, o que significa que é possível viver coletivamente de forma diferente.

Em segundo lugar, é possível viver uma vida ética, com significado e propósito. O que os socialistas convidam é ao pertencimento a uma causa coletiva. Contudo, isso só é possível quando enfrentamos os dissabores de viver juntos, um tributo razoável quando podemos experimentar a solidariedade, respeito e potência, nos fortalecendo como indivíduos e valorizando a nossa e as futuras gerações. O socialismo é este projeto coletivo que diz sim a humanidade e a natureza e nos permite ter contato com outras individualidades, tão complexas quanto a nossa, com as quais nos associamos e construímos nexos de pertencimento e valor como indivíduos. Se ele se expressa em partidos, movimentos, grupos culturais ou associações, no caso aqui específico, pouco importa. É o sentido íntimo do humano procurando se afirmar pois só coletivamente é possível superar o atual estágio de coisas em que a desigualdade social e a exploração do trabalho humano travam nossas possibilidades de realização plena.

Em terceiro lugar, ser socialista é exercitar o equilíbrio entre o hoje e o amanhã. Para os socialistas o amanhã não existe; é algo construído no hoje pela negação contraditória do que ele é e pela afirmação de um futuro. Todo futuro é a imaginação do presente e traduz parte do seu próprio passado. Albert Camus criticou os socialistas por esta devoção ao futuro que postergaria indefinidamente a realização plena no hoje do ser humano como potência. Mas o que escapa a este pensamento é que ao articular o amanhã no hoje, os socialista redefinem a relação com o tempo presente, estabelecem nele e para ele um sentido além do imediato e de si mesmo. Fazem o mesmo percurso que levou a humanidade como espécie a povoar todos os cantos do globo: definem a imaginação e a criatividade como base de nossa condição humana. Não a imaginação colonizada e capturada pelo capital mas a que se liberta desta contingência histórica, o capitalismo, para integrar-se a outra forma de organização da vida social. Este é o segredo da resiliência dos socialistas: ao priorizar um projeto de humanidade que imagina e sonha[3] – acima do lucro e do egoísmo desenfreado – reergue-se apesar das dificuldades, enfrenta a vida e aposta em um mundo em que são inúmeras as possibilidades de fazer de outro jeito.

Em quarto lugar, o socialismo é um projeto em aberto e como elaboração coletiva avesso aos dogmatismos. Não há “receita de bolo” socialista. Nosso projeto se alimenta das contradições concretas da realidade concreta. Mariátegui dizia que o socialismo será criação heróica ou não será. É um ato coletivo de escolha criadora. Este intelectual peruano, célebre pensador marxista, soube em seu tempo traduzir o marxismo a realidade social latino-americano e distanciá-lo do espírito dogmático. Colocou os povos indígenas como sujeito político central da revolução peruana e apresentou a sociedade Inca como a sociedade comunista mais avançada que já existira até então. Desta maneira, o socialismo como projeto e como utopia concreta reflete as questões do seu próprio tempo[4]. Não é uma ideologia que tenha proprietários e que tenhamos que pagar royalties. É uma elaboração centenária em que todos os que dela se serviram deram sua contribuição de forma positiva e negativa, mas sempre crítica e renovadora. Porque o socialismo não pode ser a utopia concreta dos negros, das mulheres, dos LGBTQIA+ e povos indígenas? Em entrevista publicada em 2020, Ângela Davis assim se referiu a importância dos socialistas e comunistas: “Por décadas, as pessoas envolvidas nas lutas socialistas e comunistas se referiam à “outra América”. Havia a América representada pelos que estavam no poder, e depois havia os sindicatos e as lutas contra o racismo e o sexismo. Perdemos, em nossos relatos históricos, o papel que comunistas e socialistas desempenharam na expansão das possibilidades de democracia nos EUA. Temos o seguro-desemprego como consequência das lutas dos anos 1930. Os comunistas negros no Sul ajudaram a abrir o terreno para o Movimento dos Direitos Civis.”[5] As nossas lutas são como rios que se cruzam permanentemente. Nada impediu ou impedirá de ser. E conhecendo um pouco e pesquisando a história do pensamento socialista basta lembrar de nomes como Ângela Davis, CRL James, Hamilton Cardoso, Domitilla Barrios Chungara, Josina Machel, Herbert Daniel e tantos e tantos socialistas que sonharam como Zumbi e Dandara com uma revolução com a própria cara, sonhos e contradições.

O socialismo, como projeto coletivo, é histórico e aberto e a afirmação pela imaginação da humanidade e da natureza. A partir dele, construímos um modo de vida ético e com propósito que optou por viver entre os dissabores e sabores da vida coletiva. Lutar por uma causa é ainda melhor que não lutar por causa alguma. A luta nada mais é que nossa imaginação coletiva em movimento. Por fim, continuo um fã de séries e filmes pós-apocalípticos mas eles são bem mais que uma forma de diversão. Basta imaginar um pouco mais além.

 

[1] SENNETT, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

[2] Cesaire, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Ed. Veneta, 2020.

[3] Fico com a definição de Airton Krenak: “O sonho é o instante em que nós estamos conversando e ouvindo os nossos motivos, os nossos sábios, que não transitam aqui nesta realidade. E um instante de conhecimento que não coexiste com este tempo aqui.” Disponível em: https://teoriaedebate.org.br/1989/07/06/ailton-krenak-receber-sonhos/ Em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), Krenak volta ao tema ao afirmar “Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia.” (grifo meu, Krenak, 2019, p.20)

[4] MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

[5]https://contee.org.br/angela-davis-fala-sobre-a-luta-pela-democracia-real-e-o-internacionalismo-socialista/

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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