(...) O bolsonarismo se organiza a partir de várias camadas que se atraem, repelem e articulam de forma mais ou menos coesa em diálogo com os acontecimentos da conjuntura. A eleição e posse de Lula, além do cerco jurídico que Alexandre de Moraes e o Judiciário corretamente tem feito aos que promovem atos terroristas e antidemocráticos gerou uma situação de maior radicalização das táticas de desestabilização da ordem democrática e do estado democrático de direito. (...)

O psicanalista Erich Fromm (1900-1980) em seu livro “O medo a liberdade” (1941)[1] mostra o nazismo como um fenômeno que teve entre seus principais apoiadores setores da classe média alemã ressentidos com a crise econômica do país dos anos 1920 e que elegeu como “bode expiatórios” judeus, negros, ciganos, artistas, intelectuais e comunistas. Diante da insegurança e da incerteza da crise econômica era preciso restabelecer a ordem e retomar status social perdido a partir de uma prática política violenta e desumanizadora de coletividades sociais que não ficariam apenas no pensamento e no discurso mas na ação e eliminação de adversários, política que caracterizou Hitler e o III Reich. Fromm articula processos coletivos relativos a predominância do capitalismo monopolista, a estrutura de classe na Alemanha pré-nazista a processos subjetivos no campo da psique que estiveram na base da ascensão de Hitler.

Processos objetivos e subjetivos caminham “juntos e misturados”. Não por acaso percebemos hoje a proliferação de reality shows (como o Big Brother Brasil) e filmes e seriados que se passam em cenários pós-apocalípticos (The Walking Dead, Alice in Boderline, entre outros) em que o sadismo, a competição desmedida e o egoísmo mais visceral são alçados a posição de destaque e formam um espécie de nova ética e moral da sociedade neoliberal. Em uma sociedade em que a insegurança, a crise e a falta de oportunidades são naturalizados, em que este modelo econômico capitalista é vivido como limite da existência humana, estamos todos (queiramos ou não) em um episódio do Round Six, lutando para literalmente sobreviver a próxima prova. É uma sociedade em que ninguém quer ser o próximo eliminado e se tiver sorte de chegar até o final e ganhar o primeiro prêmio poderá constar na lista de subcelebridades da próxima Farofa da Gkay. Triste destino!

Apesar de estar em outro período histórico e a partir de outras condições sociais, podemos trazer, com algum nível de utilidade e sem fazer uma transplantação mecânica, encontrar algumas semelhanças o que pensou Fromm a respeito da Alemanha nazista e o bolsonarismo brasileiro dos dias atuais.

Em primeiro lugar, assim como o nazismo e o fascismo na Europa, o bolsonarismo não é um fenômeno isolado. Após a sua derrota na Europa com o fim da II Guerra Mundial (1945), a extrema-direita voltou a tornar-se uma força política importante e influente nas sociedades capitalistas mais avançadas desde o começo dos anos 2000[2]. O que singulariza o bolsonarismo é ele ser expressão da extrema-direita em uma sociedade capitalista periférica como o Brasil o que, por sua vez, ocorreu a partir de uma forte articulação com a política externa dos Estados Unidos[3]. Evidentemente, do ponto de vista de seu “programa”, o bolsonarismo atendeu aos interesses da burguesia nacional e norte-americana de definir um lugar subordinado do Brasil na divisão internacional do trabalho, contribuindo a desindustrialização do país e a abdicação de sua soberania intelectual e econômica. E o fez a partir de um golpe parlamentar, jurídico e midiático contra presidente Dilma, em 2016, que em pouco tempo teria fortes ecos na caserna e no setor militar.

O bolsonarismo está mais próximo de seus congêneres latino-americanos que, não obstante suas diferentes configurações, funcionam como diques a conter o potencial de avanço de uma agenda política que possa pôr em xeque a hegemonia dos Estados Unidos na região frente a outras potências econômicas como a China. Chile[4], Bolívia[5] e Argentina[6] são países com governos progressistas em que se observam tentativas de desestabilização por parte da extrema direita de seus governos. Já no Peru, o esquerdista Pedro Castillo teve seu governo inviabilizado pelos setores derrotados nas urnas e foi destituído recentemente, o que gerou uma onda de protestos com forte repressão de uma presidenta e um Congresso Nacional extremamente impopulares[7]. Na Colômbia, a vice-presidenta Francia Márquez denunciou um plano de atentado a bomba contra ela por conta de seu ativismo ambiental[8].

Em segundo lugar, o bolsonarismo tem em seu núcleo mais engajado e violento a classe média brasileira, em especial, aquela que perdeu poder de compra com a crise desencadeada a partir da quebra do banco Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008.[9] Uma classe média endividada, vendo seu poder aquisitivo diminuir e que não se serve diretamente dos serviços públicos (SUS e Escola Pública) e das políticas de transferência de renda (Bolsa Família) viu seu último reduto, a universidade pública, ser ocupada por negros e estudantes de baixa renda e sua empregada doméstica ter os mesmos direitos trabalhistas dos trabalhadores em geral. Para ela, a classe média, a burguesia e o capital financeiro é uma classe intangível, bem diferente dos mais pobres que viu perigosamente, nos anos dos governos do PT, se aproximar de seu nível de vida. O Estado é, para este setor, um elemento hostil por distribuir recursos entre os mais pobres que não seriam, desta maneira, uma “força produtiva”. É o que está por trás da ideia do “cidadão de bem” (trabalhador, ordeiro e disciplinado) que tem por outra face o “cidadão aloprado”, violento e agressivo num sentimento de destrutividade que Fromm define como “uma fuga à insustentável sensação de impotência” (Fromm, 1984, p.153).

Em terceiro lugar, o bolsonarismo que tem como vanguarda setores da classe média e da pequena burguesia consegue se articular com outros setores da sociedade brasileira com raízes nas periferias, nos aparatos de segurança, no parlamento e nos executivos estaduais e nas Forças Armadas. Não se organiza os atos terroristas de 08 de janeiro, em Brasília, sem algum nível de articulação e planejamento, o que ficou ainda mais evidente quando da descoberta do plano golpista sob guarda de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e ex-secretário de segurança do DF[10]. Os financiadores do atos terroristas formam uma rede[11] que, não podemos destacar a possibilidade, ter fontes internacionais[12]. Quando falamos em vanguarda bolsonarista tomando o termos mais no sentido militar como “a primeira linha de um exército” que se propõe a romper as linhas inimigas mas que não necessariamente conhece os planos e a estratégia mais geral de seus comandantes. Este é um fato importante. O bolsonarismo se organiza a partir de várias camadas que se atraem, repelem e articulam de forma mais ou menos coesa em diálogo com os acontecimentos da conjuntura. A eleição e posse de Lula, além do cerco jurídico que Alexandre de Moraes e o Judiciário corretamente tem feito aos que promovem atos terroristas e antidemocráticos gerou uma situação de maior radicalização das táticas de desestabilização da ordem democrática e do estado democrático de direito. A derrota do bolsonarismo não se dará de uma vez só: trata-se de uma xadrez político com desfecho, infelizmente, ainda incerto.

[1] FROMM, E. O Medo à Liberdade. Tradução de Octávio Alves Velho. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983.

[2] https://www.poder360.com.br/opiniao/geopolitica-da-ascensao-da-extrema-direita-na-europa-por-thiago-varanda/

[3] https://www.headline.com.br/bolsonarismo-uma-extrema-direita-proxima-dos-eua

[4] https://elsiglo.cl/2023/01/08/chile-ffaa-salven-a-chile-el-llamado-de-grupos-ultraderechistas/

[5] https://www.itatiaia.com.br/editorias/agro/2023/01/03/lideres-do-agro-boliviano-bloqueiam-rodovias-em-protesto-contra-prisao-de-governador-de-santa-cruz-de-la-sierra

[6] https://www.poder360.com.br/internacional/cristina-kirchner-condenada-6-anos-prisao/

[7] https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/america-latina/78550/46-vidas-apos-destituicao-de-castillo-governo-de-boluarte-mata-mais-de-1-peruano-por-dia

[8] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/01/11/vice-presidente-da-colombia-denuncia-plano-de-atentado-com-explosivo.ghtml

[9] https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonarismo-e-uma-ideologia-de-classe-media-americanizada-ressentida/

[10] https://www.brasildefato.com.br/2023/01/12/documento-encontrado-na-casa-de-anderson-torres-revela-plano-para-mudar-resultado-da-eleicao

[11] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/governo-identifica-financiadores-de-atos-antidemocr%C3%A1ticos-em-10-estados-1.970142

[12] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-20/os-lacos-do-cla-bolsonaro-com-steve-bannon.html É importante destacar a relação dos irmãos Koch com o MBL. A respeito ver:  https://outraspalavras.net/direita-assanhada/os-irmaos-koch-miram-a-america-latina/

 

 

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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