A estética do radicalismo negro “caminha bem”. O punho negro, símbolo do Black Power, estampa-se fielmente nas camisas do slogan Black lives matter (Vidas negras importam). Cita-se prazerosamente Malcolm X, os Black Panthers, Assata Shakur, entre outras figuras do movimento negro. Mas, longe da imagem e da retórica, o que fazemos atualmente com o legado dessa herança política?
Opor-se à hegemonia do liberalismo negro1
Norman Ajari2
“O radicalismo negro é feito para criar desconforto,
não somente nos brancos, mas, em todos nós.”
Kehinde Andrews, Back to Black, p. XVII
A estética do radicalismo negro “caminha bem”. O punho negro, símbolo do Black Power, estampa-se fielmente nas camisas do slogan Black lives matter (Vidas negras importam). Cita-se prazerosamente Malcolm X, os Black Panthers, Assata Shakur, entre outras figuras do movimento negro. Mas, longe da imagem e da retórica, o que fazemos atualmente com o legado dessa herança política? Somos nós as pessoas que darão continuidade aquilo que o historiador negro quebequense David Austin denominou “o longo período do Black Power”3, que compreende o anti-escravagismo, o nacionalismo negro, o pan-africanismo, isto é, todos os movimentos significativos da história da diáspora? Que nos seja permitido duvidar. Com efeito, essa cosmética radical dissimula algumas vezes uma política integracionista e liberal que nada tem em comum com as reivindicações de nossos predecessores: um liberal-radicalismo enganador e sem conteúdo.
O movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) nos Estados Unidos é emblemático dessa traição. Criticada por numerosos militantes locais, a direção central da dita “Black Lives Matter Global Network Foundation”, acumulou uma soma astronômica de doações administradas de forma completamente nebulosa4. No momento da última campanha presidencial estadunidense, a autointitulada diretora executiva da Fundação, Partisse Cullors, apoiou sem condicionantes a chapa Biden-Harris – dois políticos pró-polícia dentro desse quadro desastroso para as comunidades negras. A retórica das alianças e das coalizões está mobilizada em um só objetivo de buscar os votos e de absorver (sem escrúpulos) as energias dos militantes negros. A emoção suscitada pelos crimes policiais parece oferecer oportunidades políticas a todos os grupos demográficos norte-americanos, com exceção dos que são de longe as principais vítimas: os homens negros. Frutíferas carreiras militantes de sucesso estão sendo construídas a sombra de seus corpos amontoados.
Quanto a ideia de uma autonomia negra deixou de ser concebível? Quando nós começamos a duvidar da capacidade de ação dos negros, ao ponto de somente imaginar viver a reboque dos outros? Na melhor das hipóteses como aliados de progressistas brancos; na pior, como seus ajudantes de campo ou mesmo seus asseclas e/ou serviçais. Nós somos hoje convidados a considerar nossa herança militante como um total insucesso e a crer que a salvação dos negros está situada fora deles mesmos.
Todavia, com variações, a longa duração do Poder Negro responde sobretudo ao diagnóstico de que “o Negro é universalmente oprimido sobre bases raciais e que todo programa de emancipação devia ser construído considerando as questões raciais a priori”. Atualmente seria imprudente limitar-se estritamente a essa doutrina do raça primeiro5 e de negligenciar a importância das questões de gênero e da luta de classes por uma política negra consequente. Contudo, a orientação dita “interseccional” sistematicamente escolhida para resolver esse problema se revelou ser o cavalo de troia por excelência do liberalismo: uma máquina de guerra que deslegitima tudo aquilo que foi conquistado politicamente em nome dos Negros.
Um feminismo negro desprovido de consciência de raça e de classe sólida foi estabelecido como um padrão moral. Assim a estadunidense bell hooks, que nunca perde a oportunidade de denunciar o nacionalismo negro e o radicalismo, descreve sua política como um “engajamento para construir a fraternidade, para fazer da solidariedade política feminina entre as mulheres uma perpétua realidade […] além da raça e classe”6. Sob o pretexto de articular raça, classe e gênero, Black Power e o socialismo estão sendo assassinados com uma só pedra, em benefício de um feminismo essencialmente moral, incapaz de considerar a transformação social radical de cuja vida negra é tão necessária.
O feminismo negro como tal não é inimigo mas a orientação liberal hegemônica de hoje que investe excessivamente nas questões de gênero para apagar os conflitos de raça e de classe. Assim o intelectual britânico Paul Gilroy faz do fundador do nacionalismo negro Martin Delany “o pai do patriarcado do Atlântico negro”7. A política de gênero em vigor impôs a ideia de ruptura histórica profunda. Nós deixamos um passado maléfico e vergonhoso: aquele de um “militantismo” exagerado, dominado pelos imoderados “afro-masculinistas”. Em contrapartida, nós viveríamos um presente radiante onde a emergência da interseccionalidade é descrita como salvação e saída das trevas. A supremacia branca é a principal beneficiada dessa nova concepção da história. Com o nome de progressismo, o liberalismo negro propagou a mesma retórica que justifica pôr a vida de homens negros dentro da mesma perspectiva da ideologia da polícia e dos racistas: ele os descreve como violentos, tirânicos e insensíveis aspirantes a patriarcas8.
A autodestruição do radicalismo é em grande parte o produto da suspeita moral sistemática que nossos intelectuais negros fizeram pesar sobre a aspiração da autonomia racial. A questão do gênero (e da autonomia racial) é um pretexto dentre outros. Cego a sua excessiva exposição sobre a violência de Estado, o filósofo de Havard Tommie Shelby escreve que desde o fim da luta pelos direitos civis, os afro-americanos não têm mais interesses em comum que outros grupos sociais9. Essa análise prova sobretudo que a classe média alta negra é largamente desconectada das experiências da grande maioria da comunidade negra.
O consenso mundial é hoje ainda que as vidas africanas e dos negros da diáspora são sem valor porque eles não são verdadeiramente humanos. A herança do “longo período do Black Power” ainda não perdeu sua pertinência. Organizar os negros em torno das ideias de autonomia e de soberania. Combater a violência sexual sofrida por mulheres e homens negros. Tomar partido da luta de classes de trabalhadores negros criticando impiedosamente os compromissos de uma lumpenburguesia embriagada por uma ideia de integração e coalizão. Trabalhar a unidade política da África numa perspectiva de um programa anti-imperialista. Todos esses pontos de doutrina, repetidamente silenciadas pelo liberalismo negro da moda, estão na ordem do dia. Eles são a coluna vertebral da luta pela dignidade negra.
1Tradução: Wellington Ferreira Santos. Professor assistente do Centro Universitário Ruy Barbosa. Graduado em Letras – Língua Francesa e suas Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Texto originalmente publicado em: <https://www.cahiersdusocialisme.org/contrer lhegemonie-du-liberalisme noir/?fbclid=IwAR1vXJ8AXOKOHiWONTJoUjBfamTRMUN5FLIydU 4qG4aqvBvlNCrw_mNXqo> Último acesso em: 11/05/2021. Revisão Técnica: Professor Dr. Fábio Nogueira (Universidade do Estado da Bahia).
2 Professor de filosofia na Universidade Villanova (Pensilvânia) e membro do escritório internacional da Fundação Frantz Fanon.
3 David Austin, Nègres noirs, nègres blancs, Montréal, Lux, 2015 [2013], p. 18.
4 Maya King, « Black Lives Matter power grab sets off internal revolt », Politico, https://www.politico.com/news/2020/12/10/black-lives-matter-organization-biden-444097
5 Tony Martin, Race first, Dover, The Majority Press, 1976.
6 bell hooks, Feminism is for everybody. Passionate politics, Cambridge, South End Press, 2000, p. 17.
7 Paul Gilroy, L’Atlantique noir: Modernité et double conscience, trad. Charlotte Nordmann, Paris, Éditions Amsterdam, 2010 [1993], p. 50.
8 Tommy J. Curry, The Man-Not: Race, class, genre, and the dilemmas of Black manhood, Philadelphie, Temple University Press. 2017, p. 206-207.
9 Tommie Shelby, We who are dark: The philosophical foundations of Black solidarity, Cambridge, Harvard University Press, 2005, p. 129-130.
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