Práxis não é narrativa ou discurso para serem consumidos nas redes; é o discurso e a narrativa que derivam da práxis, entendida não como mera experiência do viver e do existir como indivíduo, mas do fazer e revelar enquanto sujeito coletivo. São dois níveis bastante distintos da experiência e, por isso, Clóvis Moura deu ênfase a dimensão estrutural e coletiva da quilombagem não reduzindo a agência do escravizado a um puro empreendimento individual mas a um processo histórico e coletivo.

As redes sociais redesenharam a perspectiva do ativismo político, em especial, da luta antirracista gozando de uma unanimidade nunca antes vista nas sociedades contemporâneas. Processos como da transição da escrita para a imprensa, dos jornais impressos para o rádio e do rádio para a televisão, foram muito mais lentos, de uma perspectiva histórica, que o advento das redes sociais e das plataformas digitais de mídia. Ao contrário dos sites e blogs, as redes sociais através dos algoritmos, colocam o indivíduo na vitrine e, por extensão, intensificam a tendência a mercantilização de estilos e modos de vida, posicionamentos e visões política e ideológicas. Ocorre a emergência do influencer, ideal e modelo do novo intelectual público que é instado a posicionar-se diariamente para satisfazer a ditadura do algoritmo e produzir conteúdo que vai alimentar os negócios das empresas transnacionais que controlam este mercado. Como diz o ditado, “não há almoço grátis”. Se você não sabe qual a mercadoria que está sendo vendida, o mais provável é que você seja a mercadoria! E como diz a canção, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, sentença que por si só mostra o que significa para nós a integração e a visibilidade pública que alcançamos a partir destas plataformas.

Por trás das telas de cristal líquido, produzidas com o coltan, mineral abundante no Congo, sendo alvo da cobiça dos interesses imperialistas dos Estados Unidos e da França, e do aplicativo que baixamos em nossos celulares com suas promessas de satisfação e recompensa imediata por nossas opiniões, fotos e memes, há todo um planejamento que envolve profissionais de marketing, psicólogos, e estudiosos dedicados em deixar este espaço mais confortável para que nossas frustrações e queixas encontrem algum bálsamo que reconforte nossos espíritos partidos e destruídos pelo cotidiano da relação de exploração do capital. Este bálsamo aparece em forma de produto dentro da estratégia de marketing direcionado. É a “seta dourado do consumo”. Muitos podem alegar que toda mídia capitalista é estruturada nas mesmas bases e que se trata apenas de mais uma etapa do seu desenvolvimento.

Mas, como marxista, entendo que toda etapa de desenvolvimento da mídia sob o capital, para ser efetiva da perspectiva dos trabalhadores, deve ser acompanhada de sua respectiva crítica o que hoje, com raras exceções, é feito[1]. Gramsci dedicou um precioso ensaio, por exemplo, em seu Intelectuais e a Organização da Cultura, ao jornalismo, apresentando o que seriam as bases de uma organização socialista da estruturação de um jornal. Fez, no entanto, dentro da perspectiva de entender a centralidade da disputa simbólica e ideológica, o que, décadas depois, Fidel Castro chamaria de “Batalha das Ideiais”. Ocupar o poder sem um projeto estratégico, sem uma visão de mundo coletiva articulada em torno de um projeto político, é perecer diante da força inercial da hegemonia burguesa. Gramsci entendeu a centralidade dos “intelectuais orgânicos”, vinculados aos interesses da classe trabalhadora, na formação de um novo Bloco Histórico e Político e de uma contra-hegemonia aos valores burgueses dominantes.

Então o que se trata aqui não é sobre ocupar ou não as redes sociais, mas como ocupar e entender que elas não substituem a ação coletiva e a luta política. A presença nas redes sociais são parte fundamental da luta política e ideológica mas é preciso antes entender, como todo meio midiático, seus limites e possibilidades, ou seja, ser crítico. Até porque não há meio midiático neutro e eles reproduzem os valores da classe burguesa. Logo, é importante ocupar estrategicamente as redes – é possível pensar em uma internacional dos influenciadores digitais anticapitalistas? – entendendo-se como parte do proletariado, dando “voz aos que não tem voz” (como o fez durante décadas Mumia Abu Jamal, preso político do Império estadunidense)[2]. Este processo não substitui a práxis e é importante recuperar qual é o sentido estratégico da práxis. De acordo com meu amigo Edu Amaral: práxis “é um termo grego, coisa que Marx sabia como sabia de Aristóteles – para que a práxis se opõe à mera prática produtiva, em que o fazer é fazer algo diferente do seu agente, isto é, o produto (suponhamos uma cadeira) é diferente do seu produtor (o marceneiro que a produziu); a práxis, em contraste, revela o agente, diz quem ele é.” Logo a pergunta é pertinente: “qual o nós da práxis?”

Práxis não é narrativa ou discurso para serem consumidos nas redes; é o discurso e a narrativa que derivam da práxis, entendida não como mera experiência do viver e do existir como indivíduo, mas do fazer e revelar enquanto sujeito coletivo. São dois níveis bastante distintos da experiência e, por isso, Clóvis Moura deu ênfase a dimensão estrutural e coletiva da quilombagem não reduzindo a agência do escravizado a um puro empreendimento individual mas a um processo histórico e coletivo. Práxis não é estilo de vida, comportamento descolado, ou seja lá o que for de uma ideologia californiana, nascida no Vale do Silício[3]. Práxis, do ponto de vista da luta antirracista, é quilombagem[4]. É condição estrutural e existencial do ser negro enquanto realidade coletiva. Aqui, retornamos a uma dimensão dialógica presentes em autores como Amílcar Cabral, Lélia Gonzalez, Paulo Freire e Neusa Santos, seja do ponto de vista coletivo como de sua relação com as subjetividades e as formas históricas de ser e desejar no plano da psique. Tornar-se negro, por exemplo, não é um processo meramente individual. É sempre e necessariamente também uma aquisição coletiva (daí talvez porque Du Bois tenha usado o termo “raça histórica”). Se toma consciência de ser negro em sua relação com o branco mas também em relação a outros negros (que são múltiplos e concretos). Destes últimos, herdamos e com eles construímos o sentido de ser e pertencer, o que só pode ser revelado na práxis.

Em todo o território nacional, temos centenas de organizações, grupos, coletivos voltados e dedicados a luta antirracista. Cada uma como uma história de lutas, derrotas e vitórias. Cada uma delas envolta na “capa da invisibilidade” porque em um país racista como o Brasil é mais conveniente nos ver como “produto” do que como vanguarda social e política de processos radicais e anticapitalistas. Não há garantia de vitória assim como não tiveram Zumbi e Dandara mas mesmo assim não hesitaram em luta e defender a todos nós até a morte. E fizeram isso coletivamente. Sonharam coletivamente. Lutaram coletivamente. Até se tornarem parte de nossa herança que atravessou séculos, chegou até nós, e nos inspira todos os dias. Não banalizemos a história de luta de nossos ancestrais e dos que vieram antes de nós!

Você que chegou até aqui na leitura deste artigo e é negro e negra: filie-se a uma organização do movimento negro! Caso não tenha em seu bairro e município, funde uma! A quilombagem continua, você faz parte dela! Poder para o povo!


[1] Destaco aqui o trabalho de Deivison Faustino e Walter Lippold. “Colonialismo digital. Por uma crítica hacker-fanoniana”, publicado em 2023 pela Editora Boitempo.

 

[2] “Voz dos que não tem voz” é o nome do programa de rádio que Mumia manteve na Filadélfia, EUA. Ele está encarcerado desde começo dos anos 1980, sendo condenado a morte em 1983, decisão revertida para prisão perpétua em 2012. Para saber mais a respeito de Mumia Abu Jamal: https://sjsp.org.br/solidariedade-urgente-em-defesa-da-vida-e-liberdade-de-mumia-abu-jamal/

[3] Barbrook, Richard e Cameron, Andy. A ideologia californiana. Uma crítica ao livre mercado nascido no Vale do Silício. Trad. Marcelo Träsel. Ed. Monstro dos Mares: União da Vitória (PR)/Baixa Cultura: Porto Alegre (RS), Primavera de 2018. Publicado originalmente na Revista Mute, Vol1, n.3, em 1 de setembro de 1995.

[4] “Se o quilombo foi um módulo de resistência radical ao escravismo. a quilombagem — o continuum dos quilombos através da história social da escravidão — foi um processo de desgaste permanente do sistema. Não queremos dizer, com isto, que houve uma articulação consciente da parle dos seus agentes sociais, mas a sua existência e a sua permanência no tempo, a sua imanência contínua constituiu um processo social o qual, atuando no centro da contradição fundamental do sistema escravista desarticulou a sua estabilidade e o desempenho econômico do seu projeto. A quilombagem deve, por isto, ser vista como um processo permanente e radical entre aquelas forças que impulsionaram o dinamismo social na direção da negação do trabalho escravo. De um modo geral, o quilombo é visto como um ato de fuga do escravo, sem um projeto político ou uma configuração consciente dos objetivos estratégicos do seu papel como agente social. Se analisarmos do pomo de vista do comportamento de cada quilombo isoladamente, isto poderá ser aceito. Mas, se analisarmos na sua totalidade o processo histórico da sua existência é que poderemos ver como a quilombagem se articula socialmente como arma permanente de negação do sistema. E o nega no centro do eixo mais importante para o seu êxito: nas relações de trabalho entre o senhor e o escravo. É justamente no nível da produção que a quilombagem atinge o sistema escravista, vulnerabilizando-o e desgastando-o através da negação do trabalho do agente mais importante da dinâmica do sistema. É através da quilombagem que a luta de classes se realiza no bojo das relações senhor-escravo. É por isto que para compreendê-la (a quilombagem) temos de encará-la como um processo permanente de negação radical ao sistema escravista.” (Clóvis Moura. “A quilombagem como expressão de protesto radical”, 2001). Disponível em: << https://www.marxists.org/portugues/moura/2001/mes/quilombagem.htm>>

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Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Sociologia pela USP (2015), possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002) e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2009). Durante seu doutorado, foi Pesquisador Colaborador Visitante da Universidade de Princeton e Pesquisador do Museu Nacional José Martí / Universidade de Havana. Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. É autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).

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